Países governados pela esquerda lideram vacinação contra Covid-19 na Europa

Atualizado em 21 de setembro de 2021 às 14:31
Lote de vacinas em Portugal

Os países governados pela esquerda são campeões de vacinação contra a Covid-19 na Europa. É o caso de Portugal e Espanha, líderes tanto no percentual da população totalmente vacinada quanto na porcentagem dos que receberam ao menos uma dose.

Mais de 76% da população portuguesa está completamente vacinada contra o coronavírus, à frente da Islândia (73%), que também é governada por uma coalizão de esquerda, Bélgica (71,9%) e Irlanda (71,7%), esses dois últimos governados por conservadores. Os dados são do Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças.

Dentre os países mais populosos da Europa, é a Espanha que se destaca, com 70,4% da população totalmente vacinada, à frente da França (67%), governada por um movimento de esquerda e direita; Reino Unido (66,7%, segundo a plataforma Our World In Data), governado pelos conservadores; Itália (65%), administrada por uma coalizão de todos os espectros políticos; e Alemanha (62,2%), liderada por uma coalizão entre conservadores e social-democratas.

Quando o critério é a porcentagem de vacinação com uma dose, Portugal também lidera na Europa, com 86,1% de sua população, à frente de Espanha (78,8%), França (78,6%), Islândia (76,9%) e Irlanda (75,4%).

Dentre os países europeus mais populosos, a Espanha supera França, Alemanha (76,5%), Itália (73,3%) e Reino Unido (72,9%).

Diversos fatores explicam como a península ibérica assumiu a liderança vacinal na Europa.

Trauma dos regimes de extrema direita

Ambos países têm na memória coletiva as respectivas ditaduras de extrema direita, Oliveira Salazar em Portugal e Francisco Franco na Espanha, que introduziram tardiamente as vacinas contra o sarampo, a varíola e a poliomielite, entre as décadas de 1960 e 1970.

Enquanto portugueses e espanhóis adoeciam e morriam dessas doenças por falta de vacina, outros países da Europa avançavam rápido rumo a sua erradicação.

Na Espanha, especialistas observam como ainda hoje o regime de Franco é lembrado como um tempo em que não se vacinava contra a poliomielite, constituindo um trauma coletivo.

Hoje, pesquisas apontam entre 2% e 3% da população portuguesa como refratária à vacinação contra o coronavírus.

Ao portal Euronews, Josep Lobera, sociólogo e professor da Universidade Autônoma de Madri, lembra que, para diversas gerações espanholas, em particular as que viveram a transição da ditadura franquista para a democracia, “as instituições sanitárias públicas formam parte da modernização do país e confiam muito nessa instituição”.

Sistema público de saúde

Tanto na Espanha quanto em Portugal, a adesão social à vacinação também é explicada por, de um lado, um apreço de ambos os povos pelo sistema público de saúde e, por outro lado, pelo caráter universal deste.
Se para especialistas, a frequente combinação entre público e privado pode ter dificultado o acesso à vacinação em outros países europeus, o sistema essencialmente público na península ibérica reforçou a confiança da sociedade, orgulhosa de suas instituições sanitárias.

Coordenação e liderança

A coordenação dos governos socialistas de António Costa, em Portugal, e Pedro Sanchez, na Espanha, com as respectivas regiões também favoreceu uma ampla vacinação.

António Costa, primeiro-ministro português. Foto: Arne Müseler/Wikimedia Commons

Ainda à reportagem do portal Euronews, Daniel López-Acuña, ex-diretor de gestão de crise da OMS (Organização Mundial da Saúde), atribui um grande esforço público, “um compromisso do governo central e de todos os governos regionais para avançar juntos e na vacinaçao”.

Essa foi uma das prioridades do governo do primeiro-ministro português. “A primeira prioridade – recuperar, respondendo à emergência do presente e lançando bases sólidas para o futuro – depende, desde logo, do sucesso do processo de vacinação”, disse António Costa no mês de maio.

A Diretora-Geral de Saúde de seu governo, Dra. Graça Freitas, foi elogiada pelo presidente português Marcelo Rebelo de Sousa (sem partido). “Ela tem um grande mérito. Uma pessoa que durante uma pandemia de mais de um ano e meio dá todos os dias a cara merece o nosso agradecimento e a nossa gratidão”.

“Estou satisfeito com o ter-se proporcionado isso à liberdade de escolha das pessoas e é com alegria que vi a Senhora diretora-geral da Saúde, com base em fundamentos técnicos, ir ao encontro daquilo que eram preocupações políticas, mas baseadas em fatos técnicos, que tinha várias vezes tido a oportunidade de exprimir. Não se tratava de impor nada a ninguém, era abrir uma possibilidade”, afirmou.

A gestão também recebeu elogios do Centro Europeu para Prevenção e Controle das Doenças (ECDC), que considerou a campanha de vacinação como “muito boa”.

Comunicação

Outro importante quesito para explicar o êxito foi a reatividade do governo espanhol na resposta a teorias conspiratórias.

“Fomos muito cuidadosos na hora de fazer frente a todo tipo de desinformação, como comprovar os fatos e reagir quando surgiram esses escândalos de trombose com a AstraZeneca em março e abril”, avaliou Lobera ao portal Euronews, que aponta estudos de riscos similares de formação de coágulos sanguíneos entre as vacinas AstraZeneca e Pfizer.

“Falamos ativamente com jornalistas científicos. Trabalhos rapidamente na comunicação das provas sobre os riscos e beneficios”, explicou Lobera.

O comitê de gestão de vacinas do governo Sanchez levou em conta estudos anteriores que mostravam que políticos exercem uma influência considerável em questões sanitárias de alta complexidade, recomendando a todas as esferas do governo que não discutisse questões médicas, reservando-as a especialistas, “para que a vacina não entre no jogo político”, diz o mesmo artigo da Euronews, que cita o caso francês como contraexemplo.

“A vizinha França ofereceu um contraste marcante, com o presidente Emmanuel Macron dizendo inicialmente aos jornalistas estrangeiros que a AstraZeneca ‘era quase ineficaz para maiores de 65 anos’ antes de voltar atrás”, compara.

Pedro Sanchez, presidente de governo espanhol. Foto: Arne Müseler/Wikimedia Commons

Consenso religioso

Em Portugal, outro fator que ajuda a explicar a liderança vacinal do país é o consenso entre as religiões. João Francisco Gomes afirma em coluna no jornal Observador que os católicos, muçulmanos, protestantes, anglicanos, hindus e testemunhas de Jeová do país são unânimes sobre a necessidade da vacinação e o entendimento de que a religião não deve justificar alguma hesitação sobre a vacina.

Outros fatores culturais, além de políticas públicas sólidas, são considerados para entender o avanço da vacinação no extremo ocidente europeu. Especialistas consideram a Espanha um país com tecido social mais coeso, com um espírito de solidariedade e comunidade maior do que em outros países, como aponta artigo de Rafael J. Alvarez no jornal El Mundo.

O lugar do caso ibérico no mundo poderia ser o do Brasil, que também conta com alto apreço da população pelo SUS e ampla adesão a campanhas de vacinação, e além do mais tinha recursos financeiros e propostas da vacina Pfizer-BioNTech no ano passado. Mas o governo Bolsonaro sabotou tudo, assim como seus homólogos ibéricos Oliveira Salazar e Francisco Franco. Uns indo pra frente, outros para trás.