Para ler e esquecer. Por Luiz Eduardo Soares

Atualizado em 11 de agosto de 2022 às 14:57
Ato em defesa da democracia, no Largo de São Francisco, na USP
Foto: Júnior Lima

Por Luiz Eduardo Soares, antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de Segurança Pública

Leitura da carta histórica em defesa da democracia, no Largo de São Francisco, na USP. Que bom! Fico feliz e choro como todo mundo. Todo mundo, digamos, civilizado. Afinal, um país não vive sem mitos – mas o que é um país? – e os mitos se fazem de remissões reverentes a si mesmos, esculpidos em bronze no altar das tradições.

Ante a majestade das Arcadas, a escumalha não vitupera contra o capitalismo – imperam os bons modos, enfim. Para exorcizar o mal maior, sacrificam-se as diferenças de classe. Para enxotar o fascismo, celebra-se a união entre capital e trabalho etc. É isso mesmo, estou de pleno acordo: quem haveria de contestar a razão?

Mas nem por isso nos eximimos de pensar. E pensar pra valer, visceralmente. Hoje, disputam a cena – e o poder de ordenar o caos de vislumbres e afetos – dois mitos: o mito das Arcadas – as Cartas do Largo de São Francisco, 1977 & 2022 – e o mito das ruínas; o passadista e o escatológico.

O primeiro remete a antecedentes respeitáveis que fizeram história e se agarra às conquistas que construíram as cidades e seus labirintos – e nos trouxeram ao impasse, acumulando iniquidades. O segundo, fascista, promete ruínas, fogo e sangue. O primeiro fala às elites, evocando o povo. O segundo rosna e grasna, acena ao ódio aceso no braseiro da história, cutuca o ventre vazio do que os doutos chamam povo.

Um dia, teremos de superar o dó de peito eloquente dos bacharéis e falar francamente, sem empostação de voz, sobre não sermos um país, sobre os limites do que chamamos democracia, sobre a pusilanimidade das instituições.

Hoje, entretanto, hoje, todavia, hoje, porém, mais-uma-vez-hoje-contudo, dependemos da patriotada de fancaria para não sermos devorados por Leviatã. Sigamos juntos, então. Marchemos lado a lado com os homens ocos, apertemos as mãos geladas do burguês fidalgo, como se fôssemos imunes ao odor pútrido do cadáver engalanado.

O que a conjuntura exige de nós não é coragem, mas um pouquinho de transigência com o patético. Já, já – não vai demorar muito, talvez nem mesmo um século – recuperaremos a compostura. Mas esqueçam tudo isso assim que terminarem de ler. Se me cobrarem por essa irresponsabilidade, negarei. Negarei sempre, sem piscar, sem hesitar. Negarei. Nunca escrevi nada disso. Essas palavras não são minhas. Também sei transigir com a transigência ilimitada da alma plástica e flexível desta nação varonil. E viva o Brasil!

Publicado originalmente no Facebook

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