Para militares, democracia não existe. Por Emir Sader

Atualizado em 28 de fevereiro de 2021 às 18:39

Publicado originalmente no perfil do autor

Por Emir Sader

O livro de entrevistas do general Villas-Boas serve, pelo menos, para saber o que anda pela cabeça dos militares que estiveram protagonizando a vida politica brasileira nestes últimos anos. A ideologia que os orienta segue sendo o anticomunismo, a função dos militares segue sendo proteger o pais dos mesmos riscos da guerra fria. O golpe de 1964 não existe como tal, assim como a ditadura. E o que se vive depois do fim da ditadura não tem a ver com a democracia, mas com outras formas de risco, de revanchismo contra eles e de ameaças de que eles são os responsáveis de coibir.

“Os episódios de 64 e a luta armada”: essa a referencia politica e histórica essencial na cabeça dela e os termos para se referir à ruptura da democracia operada pelas FFAA, ao exercício ditatorial do poder por mais de 20 anos e à resistência democrática.

“Me preocupa uma eventual volta ao poder pela esquerda”, reitera ele. Na verdade, o que exacerbou seu radicalismo foi a Comissão da Verdade, que personifica a seus olhos o revanchismo. Ai se desequilibra. Chega a dizer que não havia nenhum historiador na Comissão da Verdade, coordenada por um dos mais importantes e conhecidos historiadores brasileiros – Paulo Sergio Pinheiro.

Afirma que não devem pedir perdão, porque esse perdão, na Argentina e no Chile, foram considerados confissão de culpa, o que elevou os ataques aos militares, a ponto que os principais responsáveis pelas ditaduras naqueles países foram terminar na prisão. O que também, segundo ele, afetou seriamente a autoestima da instituição naqueles países.

Não deveriam pedir desculpas porque “aquele foi um período conturbado da nossa historia. Naquele contexto da Guerra Fria , vários atores se digladiavam, cada um seguindo motivações mais ou menos legitimas. A se materializar um eventual reconhecimento por parte dos militares, seria justo sentarem-se em torno de uma mesa todos os protagonistas do período. Estariam ai, como ponto de partida, representantes dos governos da União Soviética, China, Cuba e Estados Unidos? E as demais instituições de Estado, as organizações terroristas, partidos políticos, e agentes individuais, alguns ainda com participação ativa na sociedade? Ademais, o presidente Fernando Henrique Cardoso já reconheceu o Estado como o responsável pelos fatos ocorridos.”

Essa a maravilhosa interpretação do “historiador” Villas-Boas, a isso ele reduz o golpe militar de 1964 realizado pelas FFAA, a ditadura militar de 21 anos, as torturas, as execuções, a militarização da sociedade e do Estado brasileiros. Quase que um mal entendido, que poderia ser superado por uma conversa de todos os agentes que participaram naqueles “fatos ocorridos”. Cada um confessaria suas culpas e tudo estaria passado a limpo. Para que Comissão da Verdade e seus historiadores?

Ai vem a já difundida afirmação, que ele deve considerar genial (digna do seu colega general Pazuello), porque paradoxal: “Quanto maior a ênfase, por exemplo, em teorias de gênero, maior a homofobia; quanto mais igualdade de gêneros, mais cresce o feminicídio; quanto mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior o ambientalismo, mais se agride o meio ambiente; e quanto mais forte o indigenismo, pior se tornam as condições de vida de nossos índios”.

As lutas contra os feminicídios, a discriminação racial, a proteção do meio ambiente, os direitos das populações indígenas não avançam não pela resistência dos setores conservadores e os que diretamente atacam as populações indígenas, protegem os que degradam o meio ambiente na Amazônia, mas, segundo o diagnostico do genial pensador militar: porque “estamos carentes de valores universais, que igualem as pessoas pela condição humana, acima da classificação aleatória que se lhes atribui”. A “classificação aleatória” é a de mulheres, negros, indígenas, homossexuais, talvez até a condição de civis.

O que está totalmente ausente das teorias do general é a democracia. E’ como se o pais não tivesse, dolorosamente, saído da ditadura e passado a um longo processo de transição para a democracia. Quando se refere a esse processo, usa eufemismos, tipo: “Ao final dos governos militares, e mesmo antes, o Exercito empreendeu a ‘volta aos quarteis’, assumindo a postura do ‘grande mudo’.” Governos militares e nunca ditadura militar.

Foi esse “grande mudo” que publicou aquelas mensagens nas vésperas do julgamento do STF sobre o Lula, que justificou posteriormente que, se não o tivesse feito o processo teria “fugido ao controle” (deles obviamente).

Quando a (re)militarização do Estado brasileiro é o fenômeno mais marcante das relações de poder no pais, é fundamental conhecer o pensamento das altas patentes militares, por mais raso que ele seja. Reconhecer que ele nunca aceitaram a democracia, as mudanças foram apenas nas formas de existência dos riscos a que eles devem responder – a subversão, o revanchismo contra eles, a democratização.