Paulo Freire na era das fake news: especialista fala ao DCM sobre ataques ao educador. Por Larissa Bernardes

Atualizado em 28 de abril de 2019 às 14:57
Paulo Freire. Foto: Reprodução/Twitter

Tratado como inimigo pelo bolsonarismo, o célebre educador e filósofo brasileiro Paulo Freire é constantemente vítima de especulações e notícias falsas.

Os ataques à obra do pedagogo levaram o Instituto Paulo Freire (IPF) a criar o curso “Paulo Freire em tempos de fake news”.

Em entrevista exclusiva ao DCM, Paulo Roberto Padilha, coordenador do curso e diretor pedagógico do IPF, fala sobre os ataques da direita à pedagogia de Freire.

Leia abaixo:

DCM – O que motivou a criação do curso?

Paulo Padilha – Fizemos em fins de 2018, início de 2019, uma pesquisa pela internet para saber quais os maiores interesses das pessoas, principalmente de educadoras e educadores, sobre os temas relacionados a Paulo Freire que mais gostariam de estudar pela EaD Freiriana – nossa educação a distância que se diferencia pela alta interatividade, dialogicidade cursistas e docentes, cursistas e cursistas, além da metodologia participativa que inclui produção de conhecimento ao longo e ao final do curso. Grande parcela das respostas indicou o desejo de um curso intitulado “Paulo Freire em questão”, certamente motivado pelos ataques que Freire tem sofrido nas redes sociais, no atual contexto político de intolerância, violência social e desmanche das políticas públicas em geral. Foi então que tivemos a ideia de criar o curso “Paulo Freire em tempos de fake news”, tamanha as barbaridades, ofensas e desconhecimento do pensamento e da obra de Paulo Freire, que observamos nas críticas feitas a ele. Mais que responder às fake news, nosso desejo com este curso é informar, formar e criar um espaço para que todas as pessoas, mesmo as que fazem críticas a Freire, possam ter a oportunidade de conhecer a sua obra, a sua atualidade, suas metodologias e suas práticas inclusivas, dialógicas, humanizadoras. Por isso, também surgiu o subtítulo “atualidade, metodologias e práticas”. Paulo Freire é atualíssimo e aponta para a educação do futuro com qualidade sociocultural e socioambiental.

DCM – Os ataques a Paulo Freire sempre existiram ou começaram a surgir com o bolsonarismo?

PP – Paulo Freire não queria ser e nunca foi unanimidade. Isso é saudável. Antes, as críticas eram feitas num contexto de debate, de discussão, de aprofundamento, de diferenças ideológicas, mas num contexto democrático, apesar das diferenças. Entretanto, hoje, com esta onda de ultradireita, no Brasil e no mundo, da qual o “bolsonarismo” representa uma parcela da sociedade brasileira que alimenta o ódio, a intolerância, a violência e o retrocesso, com um presidente que, em seu programa de governo, foi capaz de propor o expurgo de Paulo Freire da educação brasileira, e que defende armas e não livros, é muito natural que quem nele votou, aja de forma violenta contra a liberdade, o diálogo, as diversidades, os direitos humanos. Fora do Brasil, cada vez mais são frequentes manifestações de apoio a Paulo Freire e de reconhecimento de suas contribuições para o mundo, como alguém que se tornou um dos grandes pensadores da educação mundial, em todos os tempos. Fora do Brasil Paulo Freire tem sido cada vez mais respeitado e valorizado.

DCM – Paulo Freire é vítima de muitas fake news? Quais são as mais graves?

PP – Sim. Nas redes sociais, no Facebook, por exemplo, encontrarmos ofensas pessoais a Paulo Freire, palavrões, xingamentos de todos os tipos, a maioria demonstrando total desconhecimento sobre ele. Mas, na verdade, não é à pessoa que querem ofender. Não é ao intelectual Freire que querem expurgar. A verdadeira intenção é destruir uma obra, uma causa que expõe claramente a injustiça social, que propõe a libertação das pessoas, a “educação como prática da liberdade”, a “pedagogia do oprimido”. A maior vítima são as causas defendidas por Paulo Freire e freirianos; por exemplo, o fato de que a educação deve formar pessoas críticas, autônomas, que saibam dizer as suas próprias palavras, e que não se submetam à exclusão cultural, à exploração econômica. Paulo Freire é um símbolo de resistência, de luta, de esperança, de amor às pessoas, à dignidade humana, em defesa dos direitos humanos. A verdadeira vítima dos ataques a Paulo Freire é a busca de justiça social, ambiental, cultural e econômica. E muitos dos que ofendem Paulo Freire sequer são capazes de perceber o que estão fazendo. Como escrevo em uma de minhas músicas, “há uma galera anestesiada comprando gato por lebre para ser feliz (…). Há um certo tipo de psicose social, um tipo de lavagem cerebral, causada em grande parte pela fake news, que não permite que as pessoas tenham clareza do que estão fazendo. Este curso é para tentar informar, esclarecer, acordar e realmente permitir que conheçam o pensamento, a obra, a práxis, as metodologias e a atualidade de Paulo Freire…

DCM – Paulo Freire é chamado, pejorativamente, pela direita de “comunista” e “doutrinador”. Na realidade, como era a atuação política do educador?

PP – Quem diz isso não sabe que é o comunismo, nunca soube que Paulo Freire foi um crítico do comunismo autoritário e totalitário, e que jamais foi ou seria doutrinador. Paulo Freire defendeu a educação como ato político, porque a política é inerente à vida, às relações humanas, econômicas, culturais, ambientais, sociais. Freire defendia e continua defendendo, porque ele continua vivo, em memória e presença, após 22 anos de sua morte (em 2 de maio de 2019), a superação da consciência ingênua e de práticas domesticadoras, que permite à pessoa desenvolver consciência e espírito crítico sobre sua própria existência e sobre o que se passa da sociedade. Defende também o pensamento científico, epistemológico, por meio do qual cada ser humano pode ser também um cientista, produzir novos conhecimentos, novas teses, o que o pensamento doutrinador e único, dos que defendem uma ideologia única, uma “escola sem partido, por exemplo, que é uma escola de um partido só. Estes, sim, são doutrinadores, mas com objetivo claro de alienar as pessoas, de praticarem uma educação acrítica, para que fique mais fácil manter a política da injustiça social na sociedade capitalista que, hoje, está provocando retrocesso histórico no Brasil, via privatização e destruição do que pertence ao povo, via extinção de conselhos participativos em todas as áreas; via a utilização das próprias fake News, para destruir o patrimônio filosófico, cultural e histórico do nosso país. Educadoras e educadores que atuam politicamente, que entendem ser a educação um ato político, jamais serão doutrinadores, porque trabalham justamente para que seus alunos e alunos conquistem as suas autonomias e seja capaz de dizerem as suas próprias palavras, e respeitando as diferenças e as semelhanças, uns dos outros, uns com os outros. Devolvo a questão: como alguém que defende o diálogo, a amorosidade, o respeito a todas as diferenças étnica, de gênero, cultural, religiosas etc. pode ser doutrinador?

DCM – Na sua opinião, o que leva Paulo Freire a ser mais reconhecido internacionalmente do que no Brasil?

PP – Paulo Freire construiu uma obra consistente que foi e é reconhecida nas mais importantes universidades de todo o mundo. Seu exílio de 16 anos, por conta do golpe e da ditadura civil-militar de 1964, evidentemente permitiu ao “andarilho da utopia”, como ele também é chamado, fazer conhecida a sua obra, mas não só: ele teve a oportunidade, como membro do Conselho Mundial das Igrejas, viajar por vários países da África, da Europa e também pelos Estados Unidos, onde é, ainda hoje, muito respeitado, conhecido, valorizado e reconhecido. Fora do país, Paulo Freire não é vítima da fake news. Nem sua pessoa, nem sua obra. Muito ao contrário. Ano passado, 2018, lançamos um livro comemorativo dos 27 anos do Instituto Paulo Freire, intitulado “Reinventando Freire: a práxis do Instituto Paulo Freire”, organizado por Moacir Gadotti e Martin Carnoy. Em parceria com a educadora Rebecca Tarlau, Martin Carnoy escreveu um artigo intitulado “Paulo Feire continua relevante para a educação nos EUA” (pgs. 87 a 100), no qual afirmam que Freire possui milhões de seguidores naquele país. E dizem ainda que a filosofia educacional de Freire “pode contribuir para o combate ao Trumpismo e sua visão de um mercado Educacional ‘pós-eficiência’. Daí, a importância de Paulo Freire para o mundo: ser capaz, hoje e no futuro, de combater a mercoescola, o Trumpismo e seus seguidores.

DCM – Quais foram suas contribuições para a educação nacional? As escolas realmente seguem a “ideologia” de Freire?

PP – Dentre as ofensas a Paulo Freire está a acusação de que ele é o responsável pelo fracasso da educação brasileira. Quem afirma isso não conhece nem Paulo Freire, nem a sua obra, nem a educação brasileira. Infelizmente, Freire nunca, até hoje, foi realmente estudado no Brasil a ponto de fazer parte integrante de um currículo nacional da educação. Isso já aconteceu em algumas escolas públicas e privadas em nosso país, graças ao trabalho do próprio Freire e quem trabalha com base nos princípios e práticas desenvolvidos e defendidos por Freire. Paulo Freire não está presente no currículo das escolas públicas de nosso país, muito menos no currículo das escolas privadas, salvo raras exceções. Lutamos desde 1998, quando Paulo Freire foi secretário de educação do município de São Paulo, para que a sua filosofia educacional e suas propostas pedagógicas fossem praticadas na educação pública, em todos os níveis e modalidades de ensino. Mas isso ainda não aconteceu, por resistência, por exemplo, à gestão democrática nas escolas, o que permite a descontinuidade administrativa nas escolas do país, e que deixa as políticas públicas à mercê de prefeitos que, ao sabor das eleições municipais, destroem completamente a política pública de seus antecessores. Falta ao país regulamentar, por exemplo, o artigo 206, inciso VI, da Constituição Federal de 1988. Este é só um exemplo. Após mais de 30 anos, não conseguimos, isso sim, o que Paulo Freire sempre defendeu, a gestão democrática nas escolas. Portanto, seguimos na luta, no Instituto Paulo Freire, ao lado de freirianas e freirianos de todo o Brasil e de vários países do mundo, para que Paulo Freire, seus princípios, suas propostas educacionais, possam realmente entrar nas escolas, desde a educação infantil à pós-graduação. Isso ainda não aconteceu. É possível afirmar que a obra de Paulo Freire influenciou e continua influenciando muita gente no Brasil e no mundo. Mas ela ainda não se fez presente, devidamente solidificadas, na grande maioria das instituições educativas de nosso país. Esta, sim, é uma das razões do fracasso da educação brasileira, de que tanto falam: não soubemos ainda aproveitar, em nosso país. Temos Paulo Freire, um dos maiores educadores de todos os tempos, e não incorporamos na nossa educação, os seus ensinamentos. E é bom lembrar que em 1963 Paulo Freire coordenava o Programa Nacional de Alfabetização, a convite do então Presidente João Goulart, para acabar com o analfabetismo no país, mas este programa foi brutalmente interrompido pelo Golpe Civil-Militar de 1964, que logo em seguida expulsou Paulo Freire para o exílio. Hoje, deparamo-nos com a absurda proposta de expurgar Paulo Freire do currículo da educação brasileira. Erro duplo: Freire não está presente, como poderia estar, como gostaríamos que estivesse, no currículo das escolas brasileiras, e, além disso, 22 anos após a sua morte, continua vivo em memória e presença, influenciando educadoras e educadores do Brasil e de todo o mundo.

DCM – Por que a extrema direita tem como alvo professores e educadores? Quais os objetivos daqueles que demonizam Paulo Freire?

PP – A extrema direita e grande parte das pessoas que nela votou nas últimas eleições para a presidência da república e para o congresso nacional (deputados federais e senadores) com base no ódio, na intolerância, na violência do uso das armas, querem silenciar professores(as), educadores(as), alunos e alunas. Querem a escola da mordaça, do silêncio, escola privatizada, destruindo a educação pública – aliás, destruindo tudo o que é público. Pretendem consolidar a escola de pensamento único, não plural. Demonizar Paulo Freire é demonizar a causa dos oprimidos, feita e construída por eles por meio de uma educação transformadora, libertadora, que acredita no sonho, na esperança, que acredita que crianças, jovens, adolescentes, pessoas adultas e idosas, serão mais felizes e mais dignas quando respeitadas em seus direitos, em suas realizações, em seus sonhos de um mundo melhor para todos. Paulo Freire defende a inclusão social, o respeito aos direitos humanos, a garantia do direito a todas e todos e, portanto, uma vida mais digna para as pessoas, superando a opressão. É por isso que Paulo Freire é considerado um educador humanista-cristão.

DCM – Esses ataques trazem o risco do apagamento do legado de Paulo Freire?

PP – Os ataques a Paulo Freire visam macular e destruir a sua obra, a sua imagem, as suas contribuições. Mas Paulo Freire já é considerado um pensador global. Ele já está marcado na história das ideias pedagógicas, um dos principais educadores da segunda metade do século 20, de todo o mundo. Os ataques passarão. As pessoas que atacam hoje passarão, ficarão invisíveis à luz da história. Mas Paulo Freire, como acontece hoje, continuará presente. De 2 de maio a 24 de junho convidamos a todas as pessoas a participarem conosco do curso “Paulo Freire em tempos de fake news: atualidade, metodologias e práticas”. Quem aceitar este convite terá a oportunidade de conhecer um pouco mais a sua obra pelo olhar e pela voz de 18 educadores(as), de vários países – Brasil, Itália, Chile, Peru, Cabo Verde e Portugal – organizados em 16 videoaulas que, certamente, trazem novidades e aprofundamentos relacionados à vida e obra de Freire. E vamos também reescrever a história, porque produziremos um e-book do qual os (as) cursistas serão co-autores desta nova escrita, que marcará a nossa presença neste contexto e neste curso.