Paulo Guedes vende a cloroquina da Economia. Por J. Carlos de Assis

Atualizado em 9 de maio de 2021 às 12:39
Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Imagem: SERGIO LIMA/AFP

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo observa que tentar controlar o câmbio com a “sintonia grossa” da taxa de juros é o mesmo que tentar curar a covid-19 com cloroquina. Inútil e com efeitos colaterais letais. Pois é justamente isso que Paulo Guedes, o inimigo número 1 da China, decidiu fazer. Aumentou a taxa básica de juros de 2,75% para 3,50%, sinalizou novas altas para o futuro próximo e anunciou, contra todas as evidências, que a inflação vai cair.

É um farsante. Mais do que isso, um lunático, como o presidente que o tirou da obscuridade como economista. Antes disso era conhecido apenas como um dos neoliberais extravagantes da equipe do ditador chileno Augusto Pinochet. De fato, é o produto de três vetores que estão destruindo o Brasil: a aliança ideológica de dois doidos, ele e Bolsonaro; a vitória da direita como maioria no Congresso, e a alienação política das massas.

Um quarto vetor é a ignorância dos militares, entre os quais a do general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, ao qual o próprio Bolsonaro atribuiu sua eleição. E um quinto a manipulação das mídias, que para barrar o PT queria eleger qualquer um. Mas voltemos à economia. Ao aumentar a taxa básica de juros, eliminando o único aspecto positivo que a taxa baixa recorde da Selic sinalizava ao país, Guedes libertou o gênio do caos econômico.

Já vimos em nossa história: aumentam-se os juros para controlar o câmbio; o investimento ainda rastejante cai mais, devido às pressões financeiras; a demanda cai; o mercado reage alimentando a inflação; a inflação crescente “justifica” outro aumento dos juros para controlar o câmbio. Menos investimento. Mais inflação. Mais juros.  Reentramos no que a sábia professora Conceição Tavares chamou, no início dos 70, de “ciranda financeira”.

No meio disso tudo teremos o provável aumento da taxa básica de juros nos Estados Unidos. Ali, ao contrário de nós, o banco central faz “sintonia fina” na economia, com o objetivo explícito de desaquecer a demanda e o investimento para, neste caso, efetivamente controlar a inflação. Nós estamos na contramão de tudo isso. Estamos longe de ter um aquecimento indesejável do investimento e o aumento dos preços se deve a outros motivos.

Na verdade, a inflação que temos – sobretudo a inflação das commodities e dos preços dos alimentos básicos – se deve exclusivamente à imbecilidade e a rigidez ideológica de Paulo Guedes. Todos os especialistas em pandemias súbitas, e mesmo os leigos razoavelmente informados, sabem que, sem uma vacina eficaz, a única forma de combater a doença é  o isolamento, assim como o distanciamento social, o uso de máscara e a higiene pessoal.

Entretanto, Guedes resistiu a iniciativas efetivas de isolamento social, sobretudo por medida de economia orçamentária: recusava garantir 600 reais, por alguns meses, a famílias mais pobres, cuja única possibilidade de ficar em casa para cumprir o isolamento era receber uma renda mínima de sobrevivência como “benefício emergencial”. Quem acabou garantindo o benefício foi o Congresso Nacional, contornando os caprichos ideológicos do ministro.

Pior. Quando o prazo de concessão do benefício expirou, em dezembro, Guedes se recusou a estendê-lo, ainda por medida de economia, embora sob risco da segunda onda da pandemia, mesmo sabendo que duraria por muito tempo, antes da plena vacinação da população. De novo, a Câmara interveio, dando caráter permanente, até o fim da doença, ao benefício. Contudo, ele forçou a redução do valor para cerca de 150 reais por mês.

Entretanto, embora conte legalmente com um orçamento sem limite, “extra teto”, Paulo Guedes ajudou Bolsonaro, exclusivamente por fetiche ideológico na questão do limite orçamentário, a cometer o genocídio “suave” de manter as famílias muito pobres no isolamento sem renda, que avançou por cinco meses em 2021. Não havia nenhuma razão técnica ou econômica para isso. Exceto respeitar um “teto” fictício, aberto só para bancos.

Bolsonaro e Guedes

Não é tudo. Não houve nenhuma iniciativa de política econômica do lado da oferta para compensar o mínimo de distribuição de renda representado pelo benefício emergencial. Guedes, sem isso, deixou que a inflação comesse com a elevação dos preços o pouco que era representado pela parca renda financeira dada pelo governo, sobretudo agora que ela se reduziu à metade em termos nominais, e mais ainda em termos reais.

Em situação de guerra ou de pandemia, é fundamental o controle de preços das commodities e dos produtos alimentares básicos através de estoques reguladores. Assim fazem todos os países que tiveram ou tem responsabilidade na proteção do bem estar dos  seus povos, como aconteceu na Grande Depressão nos EUA. A administração de estoques reguladores teria impedido a explosão dos preços das carnes, do arroz, do feijão, do milho.

Como estamos longe de uma vacinação completa, o ministro da Economia teria que garantir não apenas uma renda emergencial, mas uma renda familiar mínima de sobrevivência, a famílias pobres, sobretudo as chefiadas por mães separadas, com filhos, ou por pais e mães desempregados. É claro que o valor da bolsa-família para isso é ínfimo. Uma mãe com uma filha de quatro anos está ganhando 41 reais desse benefício, sem direito ao emergencial!

Dizer que o país está quebrado, incapaz de pagar um benefício de sobrevivência durante o tempo de isolamento na pandemia e na crise de desemprego, faz parte do arsenal de fetiches com que Paulo Guedes manipula a opinião pública. Os 3,5% de juros básicos com que a dívida pública acaba de ser premiada, em favor dos ricos e muito ricos, representam uma renda anual para eles de no mínimo 400 bilhões de reais sobre a dívida pública bruta.

Esse dinheiro, se destinado aos pobres em isolamento social, cobriria os custos correspondentes a mais de cinco vezes o dobro da renda que se garantiu no início. Se no meio do processo atingíssemos o limite crítico da vacinação, um programa eficiente de emprego – ou de pleno emprego – permitiria uma arrancada tremenda da economia, sobretudo se acompanhado de uma política decente de regulação de estoques de produtos estratégicos.

O reajuste do salário mínimo em 2021, com queda em termos reais, é outra estupidez econômica: numa depressão, é corte direto na demanda, em nome de uma economia fiscal de 700 milhões de reais. Lula, que fez da valorização do salário mínimo um dos pilares de sua gestão, enfrentou a crise de 2008 com medida oposta, apresentando resultados espetaculares. A economia saiu de uma depressão em 2009 para um crescimento de 7,5% em 2010.

Por trás dessa performance havia outra medida “keynesiana” de efeito direto no crescimento. Lula, o metalúrgico sem especialização em economia, determinou ao BNDES que abrisse financiamentos que chegaram, nos dois anos, a 200 bilhões de reais de financiamentos do Tesouro para reforçar o sistema empresarial enfraquecido pela queda do PIB em 2009. Como no caso do salário mínimo fortalecido, a medida funcionou espetacularmente.

Nada disso será feito por Guedes ou por Bolsonaro. Ou alguma coisa será feita, na base tópica de pura demagogia, se Bolsonaro, apavorado com as consequências eleitorais de sua gestão genocida da pandemia, exposta pela CPI do Senado, tentar comprar as eleições de 2021, sacrificando a ideologia fiscal extremista de Guedes. Nesse caso sem plano, sem planejamento, sem estratégia, sem verdadeira justiça social, avacalhando de vez a economia.

Na esfera do trabalho, Paulo Guedes aprofundou a infame reforma trabalhista de Temer cortando na demanda, o que é anátema em tempo de epidemia e queda generalizada de renda e do investimento. Estimulou o corte de até 25% da jornada e dos salários pelas empresas sem qualquer tipo de compensação financeira para os trabalhadores. Derrubou a capacidade de compra de boa parte da classe média e da classe média baixa.

Não é à toa que, puxada pela política genocida brasileira, a América Latina, segundo a OIT, perdeu mais de 26 milhões de postos de trabalho formais desde o início da pandemia e fechou 2,7 milhões de empresas. É uma tragédia sem paralelo em nossa história. Tudo tolerado pela grande mídia, que registra topicamente alguns fatos, mas não os analisa ou critica. Ao contrário, naturaliza Bolsonaro e Guedes, como se fossem pessoas normais.

Com esse tipo de política econômica, ou ausência de uma, o que se pode esperar desse ministro de fancaria, que lembra o liberal Joaquim Murtinho com sua estupidez econômica cavalar do início do século passado? Seu único objetivo é liquidar o patrimônio público. Vender para “fazer dinheiro”, e com ele pagar a dívida pública e gerar comissões, e  não para fazer investimentos ou empregos. Apagar a contribuição secular que as estatais tem dado ao país nesse campo.

Historicamente, inclusive no governo militar, neste caso pelas mãos pragmáticas de João Paulo dos Reis Velloso, o investimento das estatais representavam metade ou mais da formação bruta de capital fixo (FBKF) no país. Essa contribuição decisiva ao crescimento do PIB desaparecerá na medida em que Paulo Guedes avançar na privatização retalhada da Petrobrás e da Eletrobrás, assim como de outras estatais vitais para a infraestrutura econômica e o desenvolvimento tecnológico do país.

É fruto exclusivo de ideologia achar que venda de patrimônio para pagar dívida gera emprego e renda. O comprador privado “investe” em recuperar com dinheiro da própria empresa privatizada o que gastou na compra, sem realmente investir. Compare o que a Vale investiu no tempo em que era estatal com o que investiu depois da privatização: durante décadas, foi um dos motores da economia brasileira; agora é apenas uma máquina de ganhar dinheiro inócuo e matar.

Qual será o legado de Guedes-Bolsonaro na economia? Sem as estatais e sem uma política industrial, boa parte da cadeia produtiva a elas ligadas, a que ainda resta, será arrastada para o buraco e o PIB terá de esperar uma eventual regeneração dos investimentos públicos. Pode levar décadas.  É espantoso como a burguesia industrial brasileira ainda não percebeu que, tendo apoiado e continuando a adular a dupla, na verdade apostou no próprio suicídio.

Seremos um país exclusivamente do agro e dos banqueiros, no primeiro caso dependente sobretudo da Ásia, e no segundo da “ciranda financeira”. São os setores que mais ganham, mais concentram renda e menos empregam. É um destino terrível, amortecido, pobre, socialmente instável, um país de Joaquim Murtinho, que odiava fomentar a indústria – o que considerava artificial e que, como Guedes, se salvava pessoalmente como banqueiro.

Contudo, nada melhor define Paulo Guedes do que seus ataques fanáticos contra a China, nosso principal supridor de insumos de vacinas, em plena epidemia. Alinhando-se também por aí a Bolsonaro, teve a audácia de acusar o país asiático de ter “criado” a Covid para desencadear uma guerra química contra o mundo. É simplesmente inacreditável. Não que tenha dito isso. Mas que tenha pensado. Só isso bastaria para que, num país sério, ambos fossem interditados.

Paulo Guedes (FOTO: CARL DE SOUZA/AFP)

Falei nos três vetores que configuram nossa tragédia, destacando a falta de conscientização do povo, que no meio da desgraça sanitária, social e econômica, agravadas exclusivamente por Bolsonaro, Guedes e seus patrocinadores militares, contempla o governante com manifestações consagradoras no 1º. de Maio. Como superar esse ciclo infernal, se não encontramos sinais de uma estratégia regeneradora nas oposições?

O PT, seu principal representante, deriva claramente para a direita na tentativa de se ver respeitado na decadente pauta neoliberal e assim ganhar a eleição. Lula explicita concordância com a privatização da CEF, o mais próximo que temos de um banco social, e da própria Eletrobrás, tão estratégica para o desenvolvimento do país quanto a Petrobrás. Outros potenciais candidatos namoram com a ideia, hoje, devido à inspiração de Joe Biden, totalmente desmoralizada no mundo ocidental, do equilíbrio orçamentário a todo custo.

Paulo Guedes, entretanto, a despeito do fracasso absoluto de suas iniciativas erráticas no campo da economia, ainda mantém alguma credibilidade na imprensa, sobretudo junto a empresários que acreditam poder ganhar dinheiro, concretamente, com o único programa que defende de forma obsessiva, o da privatização. É assim que o país vai sendo vendido e desnacionalizado, sem reação eficaz dos mais sacrificados, a massa inconsciente.

Centenas de milhares de micro e pequenas empresas tiveram que fechar o grande número de postos de trabalho e de renda que geravam por falta de adequada proteção. Os bancos guardaram o dinheiro que haviam recebido do governo para isso, aplicando no programa menos de 40%. Agora o programa voltou, de novo empurrado pelo Congresso. Entretanto, Guedes já anunciou que em valor menor. E “la nave va”, para o abismo!