Pepe Mujica deu um soco no estômago do mundo inteiro

Atualizado em 2 de outubro de 2014 às 16:57

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Dilma Roussef puxou o orelhão de Obama.

Pepe Mujica deu um soco no estômago do mundo inteiro.

Ela levantou a bola, ele cortou.

Se o discurso de Dilma foi considerado áspero, contundente ou agressivo por jornais de vários países, o do presidente do Uruguai foi demolidor de toda a ordem internacional vigente.

Foi pedra pra todo lado, sobrou pra todo mundo. Não chegou a propor o socialismo global, mas deixou implícito.

Para mau entendedor, nenhuma palavra basta.

Só poupou os pobres. Poupou não, defendeu. Como raramente se vê na ONU, além das declarações para as câmeras e dos releases para os jornais. Não por acaso, o próprio release da ONU descreve o discurso com um desdém digno de um mero papo cabeça de maconheiro. Ban Ki-Moon reconheceu e agradeceu a intensa presença dos soldados uruguaios nas forças internacionais de paz. E chega.

Por diversas vezes Mujica aludiu ao pequeno tamanho do Uruguai. Isso pode se tornar um problema para os uruguaios, na medida em que país vai se tornando, cada vez mais, a pátria dos 99%.

Não vai caber todo mundo que começa a sonhar em viver num país onde o presidente não veste gravata e sonha com o mesmo mundo que todos sonhamos.

Todos menos os restantes 1%, que tudo vêem, ouvem e controlam, sem sequer admitir pitos.

Se fosse brasileiro, Pepe seria Zé. Pois, no fundo, ele é importante por ser exatamente isso: o Zézinho, nosso vizinho, um cara que a gente conhece e gosta, que vive como nós e entende o que a gente sente.

“Sou do sul, venho do sul. Moro ali na esquina do Atlântico com o Prata”.

Foi assim que o Zé puxou o papo na ONU. Poderia ser da avenida Atlântica com a rua da Prata, mas da zona norte.

Prosseguiu lembrando o dia que o time dele venceu o nosso numa final de Copa no Maracanã.

“Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor”.

E que, como nós, também amava os Beatles e os Rolling Stones.

“Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes.”

É ou não é nosso vizinho da esquina?

E, daí pra frente, o Zé não deixou pedra sobre pedra.

“Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba.”

Cortou a bola levantada pela vizinha Dilma, da rua de cima…

“Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.”

Prometeu uma força pra galera da rua Colômbia, não aquela dos Jardins.

“Carrego o dever de lutar por pátria para todos…
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz…”

“O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.”

E botou toda a vizinhança na roda.

“Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.”

Mandou um recado para os donos do bairro.

“Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.”

E para os donos do circo.

“Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fóruns e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…”

Para o general da banda também.

“Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.”

E bota o dedo na ferida.

“As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.
Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, da democracia no sentido planetário, porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.”

Não poupou a globalização, nem a China.

“Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.

Há pouco tempo, na Califórnia, o corpo de bombeiros festejou uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos! Cem anos acesa, amigos!! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem?”

A solução? Incorporar a ciência à política.

“Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.”

E nós com isso?

“Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização que, de fato, nós criamos.

Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos nas causas profundas, na civilização do desperdício, na civilização do usar e jogar fora, que despreza tempo mal gasto de vida humana, esbanjando coisas inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie somos nós.”

O discurso integral de Mujica pode ser visto e lido aqui.