Publicado na ConJur
Por Lenio Streck e André Karam Trindade
Hoje a coluna Senso Incomum é escrita a quatro mãos. Nossa paixão pela literatura (André Karam Trindade é produtor e Lenio Luiz Streck é o âncora) já nos fez gravar 393 programas Direito & Literatura, transmitidos pela TV Justiça, produzidos no âmbito da TV Unisinos. Hoje falaremos de um autor que frequentou vários desses programas.
A história não é nova.
Ainda em 2011, o Instituto de Advocacia Racial e Antônio Gomes da Costa Neto, técnico em gestão educacional, impetraram o mandado de segurança 30.952 (DF), perante o Supremo Tribunal Federal, requerendo a anulação do ato que homologou o Parecer 6/11 do Conselho Nacional de Educação, liberando a adoção dos livros de Monteiro Lobato nas escolas públicas.
Em 2014, após o fracasso da audiência de conciliação, determinada pelo relator, ministro Luiz Fux, sobreveio decisão que negou seguimento à ação constitucional, em face da “incompetência desta Corte para a apreciação de mandamus impetrado contra ato do Ministro da Educação que homologou parecer do CNE”.
Interposto agravo regimental, em 2020, o Plenário manteve a decisão recorrida, à unanimidade. Opostos embargos de declaração, o novo relator, ministro Dias Toffoli, sanou a omissão consistente na remessa dos autos ao Superior Tribunal de Justiça. Neste ano, ainda inconformado, o impetrante/agravante opôs novos embargos declaratórios, que restaram rejeitados. Certificou-se o trânsito em julgado.
No Superior Tribunal de Justiça, o Mandado de Segurança 27.818 (DF) foi distribuído à relatoria do ministro Gurgel de Faria. Atualmente, aguarda parecer do Ministério Público.
Vamos ao debate. Qual é o problema de fundo? Quase sempre são os mesmos argumentos. Os críticos de Monteiro Lobato utilizam-se de passagens das famosas obras infantis Caçadas de Pedrinho e Sítio do Pica-Pau Amarelo, a partir das quais alegam que o escritor faz “referências ao negro com estereótipos fortemente carregados de elementos racistas”. Alternativamente ao banimento das obras, postulam “a imediata formação e capacitação dos educadores para que possam utilizá-las de forma adequada na Educação Básica” e que “se faça consignar de forma obrigatória em todas as obras literárias, como no caso concreto, Nota Explicativa de Apresentação Obrigatória sobre a necessidade de informação em relação às questões étnico-raciais”.
Arnaldo Godoy, nosso estimado amigo e colunista da ConJur, retomou o assunto do julgamento da obra de Monteiro Lobato, recentemente, em seus Embargos Culturais. Godoy oferece um texto conciliatório, reiterando uma posição já anunciada em outros escritos: “podemos tentar construir mecanismos de esclarecimento, com a necessária mediação das leituras dos textos do autor questionado, instruídas também por notas explicativas circunstanciais”.
Não estamos de acordo, ao menos no que diz respeito às “notas explicativas circunstanciais”.
O politicamente correto
Como se sustenta desde 2012 (ver aqui), as obras de Monteiro Lobato (ainda) não foram proibidas. Elas estão sendo “apenas” censuradas. Sim, censuradas, porque, conforme se verifica por diversas posições, embora mantida sua distribuição e circulação, as obras de Lobato deveriam conter notas explicativas — quiçá alguma advertência (como nas carteiras de cigarro) — com a finalidade de contextualizar o período em que foram escritas.
Aliás, já fizeram isso no caso da extinção da onça pintada, em defesa de outra causa politicamente correta: a questão ambiental. Ficamos pensando que tipo de advertência fariam no desenho do pica-pau…
E na Bíblia? Por certo, dobrará de tamanho, tamanho o número de rodapés e explicações. Algo como: Não, o filho pródigo não é mau exemplo e nem incentivo para malandragem familiar… Não, a questão da destruição de Sodoma não é genocídio… Veja-se: passar a fio de espada pessoas, inclusive crianças, é um relato que…. e segue longa nota de cinco laudas para explicar Josué 6, 21.
Voltemos a Lobato. Ocorre que, para além dos atributos de Tia Nastácia e de tantas outras personagens que marcaram as obras de Monteiro Lobato — e, de certo modo, (con)formaram a própria História do Brasil —, a polêmica acerca da presença de “elementos racistas” origina-se de um fato paralelo.
Na verdade, as críticas dirigidas a Monteiro Lobato são resultantes das cartas que ele enviara ao escritor Godofredo Rangel e aos cientistas Renato Kehl e Arthur Neiva, nas primeiras décadas do século passado, em que defendia a superioridade dos brancos, assumindo sua simpatia pelos ideais eugênicos da época.
Todavia, a pergunta que ainda não vimos ser feita pelos intelectuais que vêm se manifestando a respeito do tema é: faz sentido retirar o valor (estético) das obras de Monteiro Lobato em razão da posição (política) que o autor tinha acerca dos negros?
Não somos advogados das obras de Lobato. Todavia, temos certeza de que a resposta à pergunta acima é negativa. Sabemos, também, que ele foi um dos maiores escritores brasileiros, reconhecido internacionalmente por suas obras de literatura infantil. Vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares entre 1925 e 1950. Antes de se consagrar como escritor, graduou-se em Direito e exerceu a função de promotor de Justiça no estado de São Paulo, de 1907 a 1911. Desiludido com o mundo jurídico, resolveu dedicar-se à fazenda que herdara de seu pai. Godoy é especialista no tema.
E, aqui, acrescentamos um aspecto interessante e desconhecido dos críticos. Entre as descobertas que temos feito por meio dos estudos em Direito e Literatura, uma delas merece destaque especial em face de sua importância para a compreensão da formação do Direito brasileiro. Isso porque estamos convencidos de que algumas narrativas literárias são mais importantes para o estudo dos fenômenos jurídicos e sociais do que a maioria dos tratados e manuais. E uma dessas narrativas é, precisamente, o conto Negrinha, de Monteiro Lobato (veja aqui o programa Direito & Literatura sobre o livro), a partir do qual o autor expõe toda a cultura escravagista que adentra o século XX, evidenciando o abismo existente entre o Direito produzido desde a abolição da escravatura e a realidade social.
Esse pequeno conto — justamente um dos criticados — nos permite refletir, de maneira singular, sobre o clássico problema da (in)eficácia das normas jurídicas, levando em conta dois pilares do Estado de Direito: a liberdade e a igualdade.
Patrulhamento jurídico
Sobrevivemos à ditadura e, nos últimos anos, ingressamos no império do politicamente correto. Isso para dizer pouco. Até estátua de Voltaire já foi derrubada. O próximo deve ser Aristóteles. Afinal, sua posição… deixemos prá lá.
Talvez estejamos andando em círculos, crentes de que a simples mudança de nome possa não significar um regresso ao autoritarismo.
É curioso como o Direito, historicamente, sempre esteve a serviço do mais forte, da classe dominante, da economia. Não é à toa, nos regimes totalitários, a constante presença de um jurista de plantão, decretando a prisão de um poeta, a fim de manter a ordem pública e a paz social. Isso é simbólico, para dizer o mínimo.
Em tempos de patrulhamento (jurídico) à cultura (literária), impossível não recordar do famoso Ministério da Verdade, de George Orwell. Em 1984, Winston é encarregado de eliminar registros, documentos e quaisquer evidências que contradissessem as verdades proferidas pelo Grande Irmão.
Ao protagonista cabia a tarefa de reescrever a história da nação de acordo com a doutrina do Partido. De um lado, as manchetes e notícias eram reeditadas através da manipulação dos fatos. Assim, com a reconstrução da História, a ideologia era conservada. De outro lado, as “inverdades” eram depositadas por Winston nos chamados “buracos da memória”, onde eram incineradas. Tudo isto através da novilíngua… Afinal, como já previa Orwell, quem controla o passado controla o futuro; e quem controla o presente controla o passado.
Imagino o que faremos, por exemplo, com as peças de Shakespeare. E a teoria jurídica de Schmitt? Imaginemos a manchete: oficial de Justiça vai à Grécia, levando em seu bornal um mandado de citação aos herdeiros da família aristotélica para que se defendam de tudo aquilo que o filósofo escreveu sobre as mulheres e a escravidão. Outra coisa: qual é o limite de tempo para a revisão?
Outra dúvida que nos acomete: também iremos “etiquetar” esses — e centenas de outros — títulos? Advertiremos os leitores acerca do contexto em que foram escritos e seus eventuais “riscos”? Ou apenas escolheremos alguns livros e autores? Ou, então, lançaremos todos nos “buracos da memória”?
Talvez seja mais fácil, e quiçá honesto, reconhecer que fracassamos hermeneuticamente.
A propósito: podemos exigir de Hegel a mesma consciência histórica de hoje? E assim por diante. Será que coisas como “apagar” Churchill não mostra um pouco o contrário daquilo que muita gente quer mostrar, hoje? Não é uma questão paradoxal? Tiremos, de verdade, por meio de uma (imaginária) máquina do tempo, Churchill da nossa história. Vamos lá. Ah, não dá? Fica ruim?
Por fim, vale citar artigo do jornalista Eduardo Affonso, intitulado Palmatória Retroativa: “É mais ou menos assim que os novos inquisidores vêm agindo em relação aos que não tinham bola de cristal e viviam em conformidade com sua época, não com a nossa. Medem os homens do século 18 com a régua moral do século 21”.
Acrescentamos: Gadamer chamava a isso de (des)respeito à distância temporal. Ele advertia: “o tempo é amigo; não é inimigo”.
Por fim: o que dirão as pessoas daqui 500 anos sobre o que fazemos hoje? Sobre nossas crenças? Sobre os emojis ridículos que usamos? Sobre os memes? Sobre os cancelamentos? Dirão, meio milênio depois, que éramos estúpidos? Ou gênios? O que dirão das pessoas que possuem automóveis e gastam combustível fóssil? Mesmo as boas pessoas giravam nas cidades com seus carros… E comiam bifes. Todos assistiam as vacas sendo levadas em desconfortáveis caminhões. E mesmo assim…
A perseguição continua… o Direito contra a Literatura.
Em abril deste ano, o Senado Federal aprovou o Protocolo Adicional ao Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre o Brasil e Portugal, que cria o Prêmio Monteiro Lobato de Literatura para a Infância e a Juventude, assinado em Salvador, em 2017. Segundo o Decreto Legislativo 14/2021, o prêmio tem o objetivo de “consagrar bienalmente um escritor e um ilustrador de livros de língua portuguesa para a infância e a juventude, que, pelo valor intrínseco de suas obras, tenham contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e artístico da língua comum”, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
Ocorre que, em junho, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental impetrou o Mandado de Segurança 38.018 (DF), questionando a validade do decreto que instituiu o Prêmio Monteiro Lobato de Literatura para a Infância e Juventude, sob o argumento de que “o feito deve ser conhecido como implementação da Reparação da Escravidão, em face do longo processo da Escravidão e dos efeitos materiais e simbólicos, razão pela qual deve impedir que teses racistas, eugênicas, discriminatórias prevaleçam em documento de divulgação, propaganda, prêmio, acordo, instrumento internacional ou ordenamento jurídico brasileiro”.
O mandamus já foi fulminado, por inadequação da via eleita, restando pendente apenas seu agravo, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli.
Numa palavra: se queremos, mesmo, fazer uma revisão histórica na literatura (e na própria história), devemos estar preparados. Primeiro, teremos que colocar um marco histórico. O que parece impossível. Segundo, quem fará? Somos tão autoconfiantes que temos a certeza de que não seremos revisados no futuro? O que é o tempo, afinal? O que é a distância temporal? Se não soubermos esses conceitos epistemológicos, faremos apenas “palmatórias retroativas”.
Por tudo isso, não podemos concordar, no varejo, com aqueles que sustentam que Monteiro Lobato seria indigno de emprestar seu nome a um prêmio internacional de literatura. E, no atacado, consideramos equivocada essa censura seletiva à literatura, que, ao fim e ao cabo, é também história. Temos de superar as limitações hermenêuticas que nos assombram em pleno século 21.