Philip Roth sempre foi um antídoto contra ondas moralistas. Por Mauro Donato

Atualizado em 23 de maio de 2018 às 12:49
Philip Roth (Foto: Divulgação)

Philip Roth é dos poucos autores que li toda a obra. E daqueles raros escritores que merecem releitura, pois muitos de seus livros abordam temas que se mostram atualíssimos.

Sociedade polarizada? Tem. Roth foi um mestre em descrever os habitantes de sua Newark natal, e os americanos como um todo, retratando magnificamente bem o comportamento e a personalidade de uma sociedade polarizada como os Estados Unidos nos anos imediatamente pré, durante e pós Segunda Guerra. Os republicanos, os comunistas, as perseguições, as delações que arruínam uma vida.

Já há muito tempo Philip Roth tratava – e alertava corajosamente – sobre o perigo dos julgamentos superficiais, sobre a incapacidade de se reconhecer a complexidade dos indivíduos e como precisam ser respeitados, como no romance A Marca Humana, no qual o professor Coleman Silk é acusado de racismo por ter se utilizado de um termo dúbio durante uma aula e então tem sua carreira e vida pessoal devastadas.

A obra de Roth é um tratado sobre as consequências de ondas moralistas que assolam o individualismo ao rotular e atacar sistematicamente alguém em razão de comportamentos translúcidos, mas não obrigatoriamente condenáveis e muito menos criminosos.

Nesses tempos de grande cinismo que vivemos, é sintomático que ele nunca tenha recebido um Nobel de literatura. A academia vinha levando a indicação em banho-maria, sobretudo após seu anúncio de aposentadoria em 2012. A premiação teria que vir pelo ‘conjunto da obra’ e o clube temia as patrulhas contemporâneas. O escritor seria alvo de apedrejamento por sua literatura ‘machista’ (deus ilumine essas pessoas que não sabem ler). Justo a academia, agora envolta em escândalo de assédio sexual entre seus membros. Irônico, não?

Não conceder o prêmio a alguém da estatura de Philip Roth diz muito mais sobre a academia do que sobre o escritor, cuja literatura é irreparável.

Sua literatura é de uma regularidade assombrosa, sempre um narrador onisciente, sempre um homem, quase sempre da faixa etária equivalente a do autor na época em que estava escrevendo a obra. Roth não fazia uso de recursos como narrar pelo ponto de vista de um feto, ou de um cão, ou de um defunto (e não que isso desmereça a obra de Machado de Assis, ou o genial Enclausurado de Ian McEwan, pelo contrário). Mas Roth nunca fez malabarismos para contar uma história muito bem contada, rica até a medula, através do subjetivismo. Não pode jamais, portanto, ser acusado de roubar o ‘lugar de fala’ de ninguém.

Grande parte de seus personagens – masculinos e não machistas – têm seu desejo sexual exposto a nu. O que não significa que o autor os glorifique. Muitos deles têm sua decrepitude igualmente exposta. Sim, isso se dá principalmente nos livros mais recentes dado, como já dito, a tal paridade entre idade do personagem e idade do próprio autor. Por isso é fundamental conhecer a obra de Roth como um todo e não por meio de pinças.

Uma das raras oportunidades em que Roth enveredou por uma narrativa distópica, resultou no brilhante Complô Contra a América, livro que faz a projeção de como seriam os Estados Unidos caso Charles Lindbergh, um piloto de avião (o primeiro a cruzar o Atlântico em voo solo), supremacista e anti-semita, tivesse vencido as eleições de 1940 no lugar de Franklin Roosevelt. Com amplo apoio dos republicanos, Lindbergh seria o cara certo para costurar uma aliança com os alemães no intuito de derrotar o comunismo. Os Estados Unidos tornariam-se aliados de Hitler e não teriam a imagem de guardiões do mundo com que se auto-intitulam. Embora ficcional, a obra é toda concebida sobre fatos e pessoas reais.

Philip Roth já fazia falta desde que parou de escrever. A irreversibilidade dessa condição deixou o mundo mais pobre de inteligência e humor.