Publicado originalmente na Ponte:
Por Carlos Canedo e Karina Iliescu
O pintor Weverton Eduardo dos Reis Almeida, 25 anos, mora no Conjunto Habitacional Condomínio Vida Nova IV, em Piracicaba, interior de SP, e, há dois meses, estava nos últimos preparativos para ver seu filho nascer.
Na madrugada do dia 28 de junho de 2020, no entanto, seu sonho foi interrompido. Policiais Militares do 10º Baep (Batalhão de Operações Especiais da PM) perseguiam um veículo roubado de um motorista de Uber por volta das 4h, quando os suspeitos pararam o carro e fugiram.
Segundo a versão dos PMs, registrada pelo delegado Mario Bortoleto Torina, na Delegacia Seccional de Piracicaba, duas pessoas fugiram para uma região de matagal e outras duas correram na direção do condomínio onde Weverton e sua família moram. A polícia decidiu perseguir os dois últimos, mas os perderam de vista e passaram pelo condomínio, onde, da portaria, teriam avistado Weverton correndo do lado de dentro do condomínio onde mora.
Segundo Letícia Bortoletto Flenhã, esposa de Weverton, e testemunhas ouvidas pela reportagem, foi nesse exato momento que os PMs entraram no conjunto habitacional e prenderam o pintor.
Letícia conta que Weverton tentou explicar que ela havia entrado em trabalho de parto e precisava de auxílio urgente. Também detalhou que estava correndo até a casa da sogra, que mora em um bloco do mesmo condomínio. Os policiais, então, teriam tomado conhecimento de sua passagem criminal e invadiram seu apartamento, mas nada encontraram. Segundo Letícia, mesmo vendo que ela precisava de ajuda, teriam negado socorro.
Ainda de acordo com o B.O., em seguida, a PM foi até o apartamento de Douglas Felipe Sabara, 28, amigo de Weverton. Douglas estava cuidando dos seus filhos, pois sua esposa havia saído para trabalhar. O rapaz, também negro, já passou por outras abordagens policiais e, em uma delas, recente, chegou a ser fotografado informalmente por um PM e a defesa dele acreditam que isso possa ter pesado na detenção.
Ele também foi detido e apontado como o “segundo cúmplice” do assalto, segundo a PM. Na delegacia, ambos, Douglas e Weverton, afirmaram que estavam dentro do condomínio o tempo todo e que desconheciam o ocorrido. Mesmo assim, os dois foram presos.
O PM Fábio Eduardo Somme, afirmou, em depoimento à Polícia Civil, que não viu a fisionomia dos indivíduos, mas que a “compleição física [biotipo] deles era idêntica”. Letícia contou para a reportagem que um dos policiais lhe mostrou uma mensagem de aplicativo de celular no aparelho pessoal dele. Nela, havia uma imagem de Weverton enviada para outro policial e teria sido através dessa foto que a vítima reconheceu o suspeito. Douglas foi reconhecido da mesma maneira.
O procedimento não cumpriu o que é previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que exige uma série de condutas, que inclui a vítima primeiro descrever o suspeito e, na sequência, várias pessoa com as mesmas características serem colocados lado a lado para então haver o reconhecimento.
De acordo com as informações que constam nos autos, para a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o “biotipo” serviu de indício de autoria criminosa.
Sem audiência de custódia
A advogada Marcela Bragaia foi acionada quando Weverton já estava na delegacia do 1º Distrito Policial de Piracicaba. Inicialmente, a defensora conta que o carcereiro não queria permitir sua entrada justificando que o acesso aos presos estava restrito por conta pandemia da Covid-19.
Após insistir, o plantonista entrou em contato com o delegado responsável, Rinaldo Puia, e permitiu o acesso por três minutos da advogada ao seu cliente.
Na carceragem, Marcela contou a Weverton sobre o nascimento de seu filho, que teve só pode comemorar com seus colegas de cela. Marcela disse que, apesar de ter tido acesso ao cliente, o direito à uma audiência de custódia, que prevê a apresentação de qualquer pessoa presa a um juiz em até 24 horas para avaliar a necessidade de manutenção da prisão, foi violado.
Como não houve audiência de custódia, Weverton foi transferido direto para o Centro de Detenção Provisória de Piracicaba. “Por conta da pandemia, algumas cidades estão fazendo essa audiência de custódia por videoconferência e em Piracicaba não está tendo audiência de custódia, o que é uma garantia legal da pessoa que é presa”, explica Marcela Bragaia. Com Douglas, o mesmo script se repetiu.
No dia 29 de junho, o promotor Luiz Sérgio Hülle Catani ofereceu denúncia contra os suspeitos com fundamento na palavra dos policiais e reconhecimento da vítima e a juíza Flavia de Cassia Gonzales de Oliveira decretou a prisão preventiva.
Celular violado
A reportagem teve acesso a um vídeo da câmera de segurança da portaria do condomínio no dia da prisão de Weverton e Douglas. As imagens mostram o porteiro Anderson Fernando da Silva, que estava de plantão na madrugada do dia 28 de junho, destravando o celular que já está sendo tomado por um dos policiais.
Em depoimento, Anderson conta ter afirmado aos policiais que Weverton estava o tempo todo do lado de dentro do condomínio e que não havia entrado ninguém que não estivesse registrado nas câmeras.
Dentro do condomínio, existem oito câmeras e somente uma foi disponibilizada para a defesa pela administração. Uma câmera filma toda a movimentação da rua em frente à portaria, provando o depoimento do porteiro Anderson, de Weverton e Douglas. As defesas estão requerendo as imagens das outras sete câmeras.
A defesa aponta que, nas imagens mostram quando a esposa de Douglas sai para trabalhar às 4h30 e, uma hora depois, por volta de 5h30, chega a primeira viatura do Baep. Às 5h53 outra viatura da PM chega ao local, às 6h chegam várias viaturas e criam uma grande movimentação de polícia no local. Weverton foi levado preso às 7h07.
As advogadas Marcela Bragaia — que defende Weverton — e Mariane Bacchin — que representa Douglas —, pretendem juntar os vídeos e a declaração de testemunho do porteiro como prova nos autos e reverter a prisão preventiva dos suspeitos. As defensoras têm confiança de que a inocência de ambos ficará provada.
Estereótipo do suspeito: negro e periférico
A pedido da Ponte, o advogado criminalista Flávio Campos, membro da Comissão de Igualdade Racial da Subseção OAB de Santo Amaro, o reconhecimento que levou à prisão de Weverton é bastante questionável. O ato de mostrar uma foto de uma pessoa à vítima é o tipo de reconhecimento “show up”. Flávio explica que esse procedimento pode provocar uma indução de que Weverton e Douglas, ambos negros e, no caso de Weverton, com passagem, são automaticamente suspeitos.
“Faz parte da ideologia da nossa Polícia Militar acreditar que as pessoas com antecedência criminal são as primeiras suspeitas de qualquer crime nas proximidades”, pondera.
“Quando a vítima recebe a imagem, ela recebe a pessoa com estereótipos de morador de periferia. Lá [na delegacia] a vítima é condicionada àquelas questões relativas a falsa memória e a influência dos policiais, que são agentes da lei, os resolvedores do problema. Eles apresentam ali o culpado, aquela cuja a pena, a restrição da liberdade, vai fazer com que o sentimento de justiça ali seja preenchido, de justiçamento na verdade.”
Flávio Campos também confirma que ambos tiveram seus direitos violados e que o juiz não observou a presunção de inocência, tanto de Weverton, quanto de Douglas. “Tem muito caso que a vítima reconhece? Sim. Mas, na grande maioria das vezes, ela não reconhece e diz que reconhece por conta da cena ali, do teatro. Parece ser coisa de Justiça, coisa de polícia, está na lei e ela acaba entrando nisso. Até por uma questão de ignorância sobre os assuntos”, avalia.
Rotina de violência policial
Em 2013, Weverton foi condenado por assalto e passou 5 anos encarcerado no sistema prisional. Weverton foi transferido de prisão em prisão, cada vez mais longe de sua cidade, até que conseguiu liberdade por bom comportamento no dia dos pais.
Sem dinheiro e sem conseguir entrar em contato com nenhum conhecido, Weverton caminhou 67 km para chegar da penitenciária Hortolândia até o bairro Novo Horizonte, na favela dos Três Porquinhos, em Piracicaba, onde seu pai e sua família viviam em uma ocupação.
Weverton e sua família, em 2018, foram contemplados, depois de quase 20 anos de luta por moradia, com um apartamento no Condomínio Vida Nova IV, empreendimento de nível 1 do programa do Governo vinculado à Caixa Econômica Federal.
Os moradores do local vêm relatando ações da Polícia Militar e principalmente do Baep, que invadem os apartamentos sem mandado ou ordem judicial e, não raro, com violência. Alguns moradores, que tiveram medo de se identificar, relataram abusos recorrentes dentro da habitação por parte dos policiais.
Sob a condição de não ter seu nome divulgado, a síndica do condomínio contou como é a abordagem dos policiais na entrada do conjunto habitacional. Segundo ela, os PMs dizem: “Eu posso entrar aqui a hora que eu quiser”.
Eduardo, pai do Weverton, conta que sofreu com a invasão da PM no seu apartamento alguns dias antes da prisão do seu filho. Segundo ele, os policiais apareceram sem mandado, com cão farejador, fuzil e metralhadora. “Entrou com o cachorro, cheirou tudo que tinha que cheirar, foi embora. Ao invés de ir embora, foi do outro lado, no bloco 13, entrou nesse bloco também. Foi na casa de um outro amigo meu, mesma história. Sem mandado, com cachorro, com tudo. Não arrumou nada. Foi na casa da vizinha de cima dele, aí foi quando prenderam ela. Saiu daqui algemada”, relatou.
No dia 19 de julho, um domingo, menos de um mês após a prisão de Weverton, a comunidade entrou em contato com a equipe de reportagem para relatar uma grande operação da PM no Condomínio Vida Nova IV. Sem mandado, sem ordem judicial e com pelo menos seis viaturas do Baep, os policiais invadiram vários apartamentos e, ao final da operação, não prenderam ninguém.
Outro lado
Questionada pela Ponte sobre a invasão de domicílio, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo enviou, por e-mail, a seguinte nota assinada pela Seção de Comunicação Social do 10º Batalhão de Ações Especiais de Polícia: “A determinação judicial é apenas um dos requisitos para a quebra da inviolabilidade do domicílio e, sim, é bem comum a Polícia Militar realizar averiguações em residências sem autorização judicial”.
Também alegaram que os policiais tendo conhecimento da situação da gestante deveriam prestar socorro e que é comum a conduta de verificar celulares, segundo a Polícia Militar, com autorização do abordado.
A reportagem pediu nota específica da conduta do PM que efetuou as prisões e participou do reconhecimento, mas, até o momento, não houve retorno.
A Ponte também questionou o TJ-SP sobre a violação ao direito à audiência de custódia de Weverton e Douglas, mas, até o momento, não houve retorno. Também solicitamos entrevista com a juíza Flavia de Cassia Gonzales de Oliveira.
A reportagem também questionou o MP, mas, até o momento, não houve um retorno.