Por Fernando Augusto Fernandes
Uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso suspendeu a vigência da Lei 14.434/2022, dando prazo de 60 dias para entes públicos e privados da área de saúde esclarecerem o impacto financeiro, na ADI 7.222 movida pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde). É hora de o Congresso limitar a 60 dias o prazo de prestação jurisdicional e da vigência de liminares monocráticas que suspendem vigência de lei votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo, obrigando a apreciação pelo plenário do STF sob pena de invasão de poderes e mesmo da prestação jurisdicional e da duração razoável do processo.
Em 2001, a Emenda Constitucional 32 deu fim à invasão do Poder Legislativo pelo Executivo com a limitação da vigência de medida provisória em 60 dias se não votada pelo Congresso. O abuso na edição de MPs, em especial no governo Fernando Henrique Cardoso, fez com que o Legislativo reagisse a fim de retornar a uma balança mais harmoniosa entre os poderes.
Exageros estão ocorrendo no Supremo Tribunal Federal, com decisões suspendendo a vigência de leis, monocraticamente sem data para análise do mérito, tendo como caso visível mais grave a decisão do ministro Luiz Fux, de 22 de janeiro de 2020, em que suspendeu a vigência de dois artigos da Lei 13.964/19, que criou a importante vigência da exigência do juiz das garantias. A decisão revogou ainda a decisão do ministro Dias Toffoli, que já suspendia por 180 dias a aplicabilidade da norma. Hoje, temos 31 meses da decisão que impede a vigência da lei, furta a nação à prestação jurisdicional quanto ao tema e impede a apreciação do ato ao Senado.
O artigo 52 da Constituição permite ao Senado, no inciso X, a possibilidade de este suspender no todo, ou em parte, a execução de lei julgada inconstitucional pelo Supremo. É de se lembrar que ao Senado cabe mais: processar e julgar os ministros do STF e participar da sabatina nas escolhas, além do procurador-geral.
O artigo 103 da CF, ao prever a ação direta de inconstitucionalidade e relacionar os legitimados, prevê que declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, dará ciência ao poder competente, e em se tratando de órgão administrativo, para que em 30 dias tome as providências necessárias.
Em 2022, foi incluído no artigo 5o , entre as garantias individuais o inciso LXVIII, sobre a duração razoável do processo. É de se pensar estabelecer o mesmo tempo de vigência das MPs (60 dias) para a vigência de liminar que suspende vigência de lei federal, perdendo de imediato a eficácia ou permitindo, tal como estabelece no inciso X do artigo 52 da CF, incumbir o Senado a votação e suspensão da medida adotada pelo STF de forma provisória.
É preciso criar mecanismos para que não haja, por um ministro do STF, a ofensa à duração razoável do processo, incluindo entre os crimes de responsabilidade, os atos de ofensa à colegialidade ao se deferir uma medida que suspende ato de outro poder e impede a análise pelo colegiado da matéria impugnada.
Recentemente o presidente Jair Bolsonaro afirmou em um vídeo que um ministro do Supremo pediu vistas e “sentou em cima” do processo que analisaria a legalidade de seu decreto que visa liberar o uso de armas. Aparentemente trata-se da ADI 6.119, na qual após voto de Edson Fachin e Alexandre de Moraes, pediu vistas o ministro Nunes Marques em 28/9/21. Depois o ministro Fachin deferiu liminar “fixando a orientação hermenêutica de que a posse de armas de fogo só pode ser autorizada às pessoas que demonstrem concretamente, por razões profissionais ou pessoais, possuírem efetiva necessidade”.
A acusação feita pelo presidente da República de que o ministro “sentou em cima” do processo depõe contra a atividade jurisdicional, a duração razoável do processo.
Importante verificar que na decisão de Barroso, que suspendeu o piso dos enfermeiros, assim como na de Fux, que suspendeu indefinidamente, muito além do razoável prazo de 30 dias do artigo 130 da CF, norma que efetiva a garantia constitucional de imparcialidade de os juízes utilizarem como justificativas argumentos de ordem econômica.
Em 2013, uma ação ordinária proposta por Demis da Costa Braga questionava o pagamento de auxílio-moradia a juízes e a membros do Ministério Público que ajudaram a criar subterfúgios a romper o teto da remuneração constitucional aos magistrados e membros do MP. O escândalo de verbas usadas e abusadas beneficiava juízes, como Sergio Moro, que defendeu abertamente que o auxílio era complementação salarial; e ao juiz Bretas, que recebia, assim como a mulher, com imóvel próprio. Só os dois juízes receberam mais de meio milhão de reais nessas verbas. Os mesmos que foram ao STF para questionar o juiz de garantias defenderam que o auxílio não era penduricalho.
Fux demorou até 2018 para eliminar o auxílio, o fazendo em 26 de novembro; portanto, cinco anos após, mas garantiu que as verbas recebidas não fossem devolvidas. Também não foi responsabilizado Deltan Dallagnol que depois do TCU decidir que houve gastos de R$ 2,8 milhões ilegais na “lava jato”, o Ministério Público Federal, de forma corporativa, decidiu que não se tratou de ato doloso e requereu o arquivamento do caso.
É de se pensar que para que membros do Ministério Público e juízes respondam por seus atos é necessário além do próprio MP não ter exclusividades nas ações de improbidade de seus próprios membros, como decidido pelo STF. É preciso ir além e permitir ação subsidiária da pública em caso desses agentes, afinal, na prática se percebe que a malversação de verba pública por membros desses poderes fica impune, por fim não se autoacusam ou se autocondenam.
O jornal Valor Econômico de 5 de setembro de 2018 dava conta de que em 2017 o Judiciário estourava o teto em R$ 101,7 milhões, e o MPU (Ministério Público da União), em R$ 126,1 milhões. Em 2019, dava-se conta de que o Judiciário brasileiro atingia o custo de R$ 100 bilhões. Em cinco anos, entre 2014 e 2019, o custo aumentou em R$ 10 bilhões; e apesar disso, as reformas administrativas colocam os membros do Judiciário a par. Há notícias de que 95,7% dos desembargadores e 79,8% dos membros do Ministério Público recebem acima do teto constitucional. Sem falar de R$ 420 milhões com a manutenção do Superior Tribunal Militar.
As verbas necessárias ao pagamento dos enfermeiros e do juiz de garantias podem facilmente ser obtidas com o respeito à lei e à Constituição no que respeita ao teto constitucional no pagamento de magistrados e membros do Ministério Público. E também é necessário incluir, entre os crimes de responsabilidade, recebimento ou pagamento acima do teto. O mundo político é responsabilizado por prevaricação nos seus atos. Não é prevaricação descumprir a norma para garantir o pagamento em interesses próprios dos membros do Judiciário e do MP?
O excepcional trabalho de Luciana Zaffalon Leme Cardoso em que analisa as opções de aplicação de recursos do Judiciário tendo como recorte o jornal O Estado de S. Paulo, abarcando o Tribunal de Justiça de São Paulo, o MP e a Defensoria do Estado, cita Boaventura de Sousa Santos, afirmando que “nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade” e assim se desviando do “ideal estruturante do Estado de Direito forjado no Brasil a partir da Constituição cidadã, em que se pressupõe o respeito às normas por todos, assim como a atuação do Sistema de Justiça para limitar o exercício do poder através de regras, impedindo arbitrariedades”.
O ralo de verba que poderia garantir de fato saúde, educação, o piso dos enfermeiros e o juiz de garantia escorre no orçamento secreto que consome o equivalente a seis ministérios, que, após impedimento, acabou liberado pelo STF por 8 votos a 2.
Estamos vivendo um momento de distorção de ataques injustificados ao Supremo como instituição. Cabe aos democratas e republicanos defender o STF como instituição no papel de defesa da democracia, das eleições e das urnas eletrônicas. Mas isso não retira a fundamental crítica aos desvios que fizeram com que as distorções de separação de poderes ao que repetidamente tenho afirmado sobre respeito ao mundo político quando se decretou prisão de senador da República fora do flagrante por crimes inafiançáveis, o embarque no lavajatismo que ajudou a corromper a legitimidade da classe política e sobrepor o Pretório Excelso aos poderes temporários e legítimos políticos.
Será necessário, na reforma administrativa e constitucional, dedicarmos finalmente a trazer o Poder Judiciário e o Ministério Público à democratização da Carta Magna de 1988, que acabou por reservar a manutenção da desassociação desses poderes à democratização do país. Não é possível passar ao largo dos debates futuros a reforma desses poderes e as medidas para que seus membros passem a se tornarem servidores. Para que os abusos, como os cometidos nos sequestros e torturas da operação “lava jato”, como relatados no livro Geopolítica da Intervenção, não se repitam.
Entre essas mudanças, certamente urgentes, estão a limitação da suspensão por tempo indeterminado de leis federais votadas e promulgadas, sob pena de invasão de poderes e negativa de prestação jurisdicional. Também o controle sobre os atos administrativos de furtar da prestação jurisdicional esses atos e a verificação das consequências de tais atos. É imprescindível, diante de tamanha preocupação manifestada pelos ministros Barroso e Fux com as contas públicas nas decisões que deferiram liminares para suspender o piso dos enfermeiros e da aplicação imediata do juiz natural, o controle e responsabilidade sobre o recebimento de salários e penduricalhos que ultrapassem o teto constitucional, porque esses atos drenam verbas fundamentais para implementação de garantias básicas aos cidadãos brasileiros.
Texto originalmente publicado no SITE ConJur.