Plano moderado e de cunho realista. Por J. Carlos de Assis

Atualizado em 31 de março de 2023 às 13:39
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Lula. Foto: Ricardo Stuckert

Não gostaria de entrar nos detalhes numéricos do “arcabouço” fiscal que está sendo enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional. Indicações de receitas e despesas orçamentárias previstas, com precisão de décimos depois da vírgula, quase nunca se realizam  na realidade prática. O que importa é o que o governo espera dos compromissos que acaba de assumir e de propor ao Congresso, e por que razão assumiu. É nisso que vale a pena nos concentrar.

O governo espera cinco principais resultados do programa: menos inflação, mais estímulo ao investimento privado, menos juros na dívida pública, mais atração de investimentos internacionais, recuperação do grau de investimento, mais previsibilidade e estabilidade da economia. Repete, no sexto item, “recuperação do grau de investimento”, sem mencionar, contudo, a retomada do crescimento autossustentável a altas taxas, talvez reconhecendo a natureza pouco ambiciosa da proposta fiscal.

Vejamos os itens, um a um. O primeiro e principal deles, prevendo menos inflação, manifesta plena confiança na eficácia de um programa cujo esteio central é o monetarismo. Eu não colocaria todas as fichas nisso. O monetarismo põe todo o peso da estabilidade monetária de uma economia na gestão fiscal. Em outras palavras, se há moeda demais na economia (déficit público) em relação a menos produção, surge um desequilíbrio entre demanda monetária e oferta, tendo como consequência a inflação. 

É claro que, se ao déficit público corresponder um aumento da produção física de bens e serviços, não há razão para inflação no mercado real. Portanto, quando há inflação, surgem duas propostas para combatê-la: cortar na demanda (déficit público), pela visão neoliberal, ou aumentar a oferta (estimular a produção), pela visão progressista. Eu preferiria essa segunda alternativa, pois preservaria ou aumentaria a capacidade produtiva da economia e o emprego. O “arcabouço” vai pelo caminho oposto.

Entretanto, as coisas nem sempre seguem o lado mais óbvio. Como fazer para aumentar a produção se as taxas básicas de juros reais fixadas pelo Banco Central autônomo se encontram em níveis estratosféricos? Elas são um desestímulo à produção. Nesse caso, entramos num círculo vicioso: a produção não cresce por causa da taxa de juros, e a taxa de juros não baixa porque o Banco Central, acreditando, como acredita, no monetarismo, acha que para baixá-la é preciso cortar na moeda via déficit público.

Naturalmente há outras questões políticas envolvidas, que é a pressão do mercado para a manutenção de taxas de juros reais elevadas, a seu favor, e a cobertura que lhe deu o Congresso, estabelecendo autonomia para sua diretoria. Essas contradições não se resolverão a curto prazo. E o programa desenhado por Haddad não será derrubado pela teoria econômica. Terá de ser submetido ao teste prático. Nesse caso, a prudência sugere um caminho gradualista, e tendo a concordar com ele.

O estímulo ao investimento privado, segundo item, depende de outros fatores também submetidos a controvérsias. Tradicionalmente, no Brasil, o investimento privado foi quase sempre “puxado” pelo investimento público. O “arcabouço” prevê aumentos no investimento público, porém em níveis contidos. Além disso, uma das consequências da Lava Jato foi liquidar com o poder de investimentos do setor privado, principalmente das grandes construtoras. Este é um grande empecilho à retomada.

O terceiro item fala expressamente em menos juros da dívida pública. Isso depende inteiramente do Banco Central, e da forma como ele interpreta o programa fiscal. Se tiver uma concepção gradualista, menos monetarista e mais efetiva para baixar os juros, como espero, pode ser que o programa funcione. Do contrário, entramos no círculo vicioso mencionado acima. O quarto item fala em mais atração de investimentos internacionais, especialmente dos grandes fundos financeiros. Penso que o programa fiscal, tendo em vista seu lado conservador, pode contribuir para isso.

O quinto item, finalmente, prevê mais estabilidade e previsibilidade da economia. É possível que isso aconteça, desde que o primeiro deles, relativo ao controle da inflação, funcione efetivamente. Do contrário, todo o edifício da economia desaba. Contudo, estamos, em geral, no campo das conjecturas. É a realidade prática que vai indicar se o programa Haddad terá funcionado ou não. Diante dos resultados, seremos desafiados, o governo, o Congresso e a sociedade, a buscar caminhos alternativos. 

Essa divagação técnica não pode ocultar o fato de que o programa está quilômetros à frente, tanto do lado econômico quanto do lado social – e, principalmente, deste – das políticas adotadas nos governos ultraneoliberais de Temer e de Bolsonaro. Na realidade, o legado de Temer foi uma política absurda e entreguista para os derivados de petróleo, e o programa de privatização de aeroportos, animado por ideologia, que está fracassando diante da devolução das concessões pelo setor privado. 

No caso de Bolsonaro, ele e Paulo Guedes se limitaram a continuar destruindo a infraestrutura pública e privada do país, construída desde o governo Vargas. Não tiveram iniciativas sociais novas, exceto o auxílio emergencial, imposto pelas circunstâncias da Covid 19. O segundo plano social, às vésperas das eleições, foi uma iniciativa em cumplicidade com o Congresso de cunho exclusivamente eleitoreiro – o qual, por sinal, não funcionou, porque o presidente embusteiro acabou por perder as eleições.

Lula está efetivamente cumprindo seus compromissos na área social, especialmente na saúde, na educação e em outros itens de interesse da sociedade, principalmente dos mais pobres. Gostaria, porém, que ele enfrentasse com mais determinação a questão da fome e da segurança alimentar. É aí que estará a estabilidade social e política de seu governo a curto, médio e longo prazos. Sem combater a fome, seu principal compromisso de campanha, perderá credibilidade e queimará seu capital político. 

O balanço final do plano Haddad é, pois, a meu juízo, moderadamente positivo. Não havia e ainda não há condições políticas para conseguir do Congresso um programa menos fiscal-monetarista. O sistema político está integralmente submetido à vontade do mercado, através dos jornalões. Uma mudança não acontecerá sem um profundo e abrangente debate na sociedade sobre concepções básicas de Economia Política, num confronto ideológico entre neoliberais e sociais-democratas.

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J. Carlos de Assis
Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)[2] e autor de mais de 20 livros.