PM espalha mortes no Guarujá (SP) e celebra contagem de corpos: ‘hoje as pessoas vão morrer’

Atualizado em 30 de julho de 2023 às 23:38
Stories de soldado da PM comemora mortes e faz contagem de vítimas | Foto: Reprodução/Instagram

Por Kaique Dalapola

Após o assassinato do policial militar Patrick Bastos Reis, 30 anos, soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, força especial da PM paulista), ocorrido na última quinta-feira (27/7), no Guarujá (SP), PMs de diferentes batalhões estariam espalhando o terror nas favelas da cidade litorânea por meio de execuções de moradores, segundo testemunhas.

Essas mortes estão sendo celebradas nas redes sociais por policiais influencers e páginas de apoiadores da PM. Postagens que mostram cenas da operação na cidade litorânea, acompanhada de um trecho da canção Rotomusic De Liquidificapum, da banda Pato Fu, que diz “Hoje as pessoas vão morrer/ Hoje as pessoas vão matar/ O espírito fatal/ E a psicose da morte estão no ar”, foram compartilhadas em páginas como as do cabo Silvino Martins Santos, do soldado Diogo Raniere Rodrigues Lima e do ex-PM e candidato derrotado a deputado estadual Luiz Paulo Madalhano Magalhães.

Na contagem das páginas policiais, 12 pessoas já teriam sido mortas pela PM — número não confirmado pelas fontes oficiais até o momento. Nos grupos de Whatsapp dos bairros e nos papos nas ruas, corre o rumor de que policiais teriam prometido chegar a 60 mortos para se vingarem da morte de Patrick.

“Eles não querem saber se está no crime ou não. Se tem família, se é trabalhador, se sustenta filhos… Não querem saber de nada, se tiver passagem [pelo sistema carcerário] ou qualquer tipo de tatuagem que eles atribuem ao crime, já vão matar”, afirma um morador da favela da Vila Edna. Outro bairro que vem sendo alvo dos ataques policiais é a Vila Zilda, onde o soldado foi morto.

Uma das mortes confirmadas é a do vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, 30, que teria sido torturado e executado na Vila Baiana, na noite de sexta-feira (28), segundo testemunhas. Moradores contam que Felipe saiu para comprar cigarro e foi abordado, na esquina da casa onde morava de favor, por três policiais da Rota: o sargento André Felipe Quintino Danielli e soldados Rodrigo França Lourenço e Claiton Ralf Dias da Silva.

Na abordagem, Felipe teria sido arrastado para um barraco e torturado, segundo testemunhas ouvidas pela Ponte. Moradores contam ter ouvido gritos de dor e pedidos de socorro do vendedor. Uma vizinha ainda teria tentado intervir, mas os policiais negaram o acesso dela ao barraco.

Familiares relatam que viram vários tiros e marcas que acreditam ser de queimaduras de cigarro no corpo de Felipe. “Ele gritou por socorro quando foi baleado. Não deram os tiros de uma vez, foram atirando aos poucos. Ele gritou e pediu ajuda por muito tempo”, conta um parente de Felipe, que não será identificado.

Vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes foi morto na Vila Baiana, no Guarujá. Foto: Reprodução

“A favela toda ouviu o que eles fizeram. Eles [policiais] gritavam para jogar a arma no chão, e ele [Felipe] repetia que não tinha arma. Então eles atiraram, e ele começou a pedir ajuda. Esperaram morrer para, só depois, jogar no camburão e entregar na UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] já sem vida, igual um lixo”, disse uma moradora da Vila Baiana.

Familiares contam que Felipe já havia atuado no crime, mas atualmente estaria trabalhando como camelô na praia, ajudando uma colega que vende raspadinhas. “Ele estava se programando para comprar o próprio carrinho de açaí dele”, conta o familiar. Felipe morreu a duas semanas de completar 31 anos, e sem ter tido a chance de ir para uma nova casa, que havia alugado para deixar de morar de favor. Tinha uma filha de 6 anos.

No boletim de ocorrência registrado na Delegacia da Polícia Civil de Guarujá, consta apenas a versão dos policiais. No depoimento, os responsáveis por matar o ambulante afirmam que estavam em patrulhamento na área quando viram que Felipe “mudou repentinamente de direção” ao ver a viatura da Rota e “levou a mão em direção à cintura”.

Ainda conforme a versão policial registrada no boletim, Felipe correu para um barraco na rua. Quando os policiais foram atrás, viram o vendedor ambulante com uma “arma em punho”. O sargento Quintino, então, disparou seis vezes contra, enquanto o soldado Lourenço efetuou mais três tiros, segundo a versão oficial.

‘Quem corre risco de morrer são os pais de família’

O morador da Vila Edna afirma que traficantes da região teriam até deixado o bairro. “Quem ainda é do crime já meteu o pé daqui. Só quem continua e corre risco de morrer são os pais de família que um dia foram presos e hoje seguem a vida correta, ou a molecada que infelizmente comete um delito ou outro, mas não tem nenhuma condição de fugir das mãos dos policiais”, diz.

Para o ativista e historiador Douglas Belchior, cofundador da UneAfro e que está acompanhando famílias vítimas de violências na favelas do Guarujá, “as manifestações dos policiais fazendo apologia, comemorando, prevendo e contando as pessoas assassinadas por eles são a prova do mais perverso crime, aquele cometido por quem deveria garantir a vida e a segurança das pessoas”.

“São pistoleiros, assassinos autorizados pelo alto comando da polícia nos Estados. Além de identificar e punir os monstros que promovem assassinatos e terror indiscriminado nas comunidades, é preciso responsabilizar o comando, a hierarquia militar e também o comandante em chefe das armas no Estado de São Paulo, que é o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos)”, afirma Belchior.

Identificado como autor dos tiros que mataram o PM da Rota, Erickson David da Silva se entregou à PM no início da noite deste domingo (30). Em vídeo compartilhado nas redes, Erickson se disse inocente e afirmou que se entregaria para que o governo terminasse com as “matanças”. “Eu quero falar para o Tarcísio e o Derrite para de fazer a matança, matando uma pá de gente inocente, querendo pegar minha família, sendo que eu não tenho nada a ver, estão me me acusando aí, eu vou me entregar, não tem nada a ver”, afirmou.

O extermínio aleatório de moradores de bairros pobres após a morte de agentes de segurança do Estado é uma prática sistemática de vingança adotada por policiais paulistas em diversas ocasiões. No episódio mais sangrento, ocorrido em maio de 2006, após uma série de ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) matar 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais, policiais foram às ruas de bairros pobres, vestindo fardas ou as toucas ninjas dos grupos de extermínio, e mataram 505 pessoas — entre elas uma mulher grávida de nove meses, baleada na barriga horas antes de cesárea agendada no hospital. Em 2012, novos ataques do PCC levaram a Polícia Militar a praticar uma série de matanças, que culminaram, em janeiro do ano seguinte, em uma chacina de sete mortos no Jardim Rosana, entre eles o rapper Laércio Grimas, o DJ Lah.

A maior chacina da história de São Paulo, a morte de 23 pessoas em Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, em agosto de 2015, segundo o Ministério Público Estadual, também foi motivada por uma ação de vingança, contra a morte de um PM e de um guarda civil municipal ocorridas dias antes.

O que diz o governo

A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre as ações violentas nas favelas do Guarujá e pediu o número oficial de mortes cometidas por policiais durante as operações em busca de suspeitos pela morte do soldado Reis. A pasta também foi questionada sobre as informações de operações e vítimas publicadas nas redes dos policiais que defendiam a violência.

Por meio de nota, a Secretaria, comandada pelo pelo capitão da PM Guilherme Derrite, disse que desde o dia 23 de julho realiza uma operação no Guarujá em decorrência dos altos índices de criminalidade na região. “Desde o começo da operação, a polícia tem enfrentado grande resistência dos criminosos, e na quinta-feira, um deles vitimou um policial da Rota que patrulhava uma comunidade”.

Depois da morte do soldado Reis, na quinta-feira, a secretaria afirma que “a PM e a Polícia Civil desencadearam a Operação Escudo, para identificar, localizar e prender os envolvidos no assassinato do policial”. De acordo com a pasta, os quatro envolvidos no crime já foram identificados, sendo que dois foram presos, um morreu em suposto confronto com a polícia e outro está foragido.

“Vale ressaltar, também, que desde sexta-feira, mais de 10 pessoas foram presas em flagrante tráfico de drogas e dezenas de quilos de entorpecentes foram apreendidos”, finaliza a nota. A pasta não comentou sobre as publicações de policiais nas redes sociais e sobre o número de vítimas que os próprios PMs compartilham nas redes.

Publicado originalmente no site “Ponte”

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