PM tenta incriminar mulher negra em ato contra racismo no Carrefour. Por Débora Britto

Atualizado em 21 de novembro de 2020 às 17:30
Momento em que o ato entra no estacionamento do Carrefour. Foto: Rafaella Gomes

Publicado originalmente no Marco Zero:

Por Débora Britto

Dezenas de pessoas participaram do ato contra o racismo e denunciando a rede de supermercados Carrefour no Recife, em frente à loja de Boa Viagem, bairro rico da zona sul da capital pernambucana. A manifestação foi marcada para fazer eco à onda de protestos no Brasil depois do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, um homem negro que foi espancado e morto por um segurança e um PM em frente a uma loja do supermercado Carrefour, no bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, na noite da quinta-feria (19).

O ato teve caráter pacífico e de denúncia do racismo, mas acabou com tumulto quando uma ativista foi detida e levada para delegacia pela Polícia Militar, sem justificativa plausível. Ela foi acompanhada até a delegacia de Boa Viagem, mas liberada depois de prestar depoimento. Não foi registrado Boletim de Ocorrência, nem Termo circunstanciado de ocorrência, que sugere que ativista foi detida numa tentativa de criminalização do ato e para intimidar manifestantes negras e negros.

Às 13h, já no encerramento da manifestação e com pessoas começando a dispersar, a ativista da Rede de Mulheres Negras, que não iremos identificar por motivo de segurança, foi abordada pela PM. Segundo relatos de ativistas que estavam na hora, a PM disse que ela seria a responsável pela manifestação e deveria prestar esclarecimentos na delegacia.

A advogada Thaisi Bauer estava no ato e acompanhou o depoimento dela na delegacia. Ela conta que, desde o início, às 11h, ela e outros advogados estavam em contato com o Major Marcos Paulo, que estava local com um destacamento policial. De acordo com seu relato, tudo estava tranquilo até o momento em que o ato se dirigiu para o estacionamento do Carrefour e, já dentro do estacionamento, uma cancela eletrônica foi quebrada por manifestantes. Além disso, foram pixados o chão e parede da área exterior. “Justiça racista”, Vidas negras Importam” e “Racista” foram algumas das pixações.

“O policial, o major, veio para mim e disse que alguém ia ter que ser responsabilizado por isso. Eu disse que não tem como ninguém ser responsabilizado porque você só responde a um crime levando em conta a individualização da conduta. Você tem que ver alguém praticando”, explica a advogada.

Ela afirma que estavam querendo responsabilizar o organizador ou organizadora. No entanto, o ato foi organizado por várias organizações, movimentos e coletivos que compõem a Articulação Negra de Pernambuco (Anepe). Para a advogada, a atitude do policial sugere que havia uma ordem para responsabilizar alguém.

Abordagem injustificada 

A ativista que foi detida já estava prestes a entrar no carro que chamou quando foi abordada. “Ela estava esperando o Uber, já tinha pedido o Uber e do nada chegam dizendo que iam levar ela para a delegacia”, relata Bauer.

A mulher chegou a entrar no veículo, os policiais cercaram o carro e os manifestantes foram para cima tentar impedir que a PM retirasse a mulher de lá e a levasse detida. A confusão teve empurrão, tentativa de diálogo de ativistas e de advogados que acompanhavam a manifestação, mas sem sucesso. Relatos de quem estava no local e fotógrafos é de que a maioria dos policiais estavam sem identificação na farda, muitos com armas de grande porte.

Segundo a advogada e ativistas ouvidos pela reportagem, a PM foi inflexível e sequer explicou o motivo da detenção. “A gente perguntava qual era a justificativa, porque ela. Qual é o motivo? Não tem como levar uma pessoa para a delegacia sem motivo algum”. Foi apenas na delegacia que tomaram conhecimento de qual seria a acusação: o dano ao patrimônio do Carrefour.

“Na delegacia, a delegada disse que não tem justificativa. Ela não foi pega em flagrante, não teve TCO nem Boletim de Ocorrência. O que teve foi a abertura de uma portaria em que ela foi escutada como uma das suspeitas de ter causado dano dentro do Carrefour”, explica Bauer. Essa portaria prevê uma investigação inicial para identificar suspeitos. Agora, a ativista deve aguardar os resultados e, de acordo com a advogada, ser liberada, uma vez que não teve participação nos atos que quebraram a cancela do supermercado.

Quando o tema é racismo, a PM tende a seguir um padrão: tentar incriminar e responsabilizar mulheres negras que estejam sozinhas. “Ela foi apontada e escolhida por ser uma mulher negra, por estar ali. Não foi aleatório. Ela foi apontada no meio de várias outras pessoas. Eles queriam responsabilizar alguém e estava o tempo todo em contato com o coronel da PM”, conclui Bauer.

Histórico de assassinato e racismo

Em Porto Alegre, os seguranças Magno Braz Borges (segurança terceirizado do Grupo Vector) e Giovane Gaspar (policial militar temporário) foram presos em flagrante e tiveram a prisão preventiva decretada por um juiz ainda no dia 20.

O magistrado destacou a brutalidade do assassinato que foi registrado por ao menos três câmeras: a de segurança, de alguém que estava longe e de uma mulher, aparentemente funcionária do Carrefour, que estava ao lado dos agressores de João Alberto com um celular apontado para o homem que apanhada no chão.

O Brasil amanheceu no dia 20, Dia da Consciência Negra, com mais um caso de racismo e morte que, infelizmente, não é isolado. A revolta da população levou milhares de pessoas a manifestações ontem em Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e outras cidades.

O Carrefour tem um histórico de casos de violência, racismo, tortura e morte. Em 2009, um homem negro foi espancado por seguranças do Carrefour acusado de roubar o próprio carro. O portal Geledés, Instituto da Mulher negra, elaborou um dossiê que reúne casos de racismo envolvendo a rede de supermercados desde então. São 11 anos contabilizando casos que, se não matam, fazem vítimas diariamente.