Policiais e a possibilidade de um levante armado em defesa de Bolsonaro

Atualizado em 3 de junho de 2020 às 19:37

Publicado no Brasil de Fato

Encontro de Bolsonaro com policiais durante a campanha para a eleição presidencial de 2018 – Twitter

No dia 27 de abril, o secretário de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), general João Camilo de Pires Campos, trocou o comando da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), um grupo de elite da Polícia Militar, que agora será chefiada pelo tenente-coronel José Augusto Coutinho. Nos bastidores da corporação, a mudança foi recebida como um recado político a João Doria (PSDB), governador do estado.

Isso porque o tenente-coronel Mário Alves da Silva Filho, prestigiado entre seus pares e afastado do comando da Rota, testou positivo para coronavírus e, durante a quarentena, se alinhou com o governador João Doria (PSDB) na defesa do isolamento social para controlar a covid-19, indo contra o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em relação à doença.

Ex-policial militar, o senador Major Olímpio (PSL-SP), que tem sido eleito com o voto da corporação desde 2006, quando chegou à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), afirma que o “boato, de fato, existiu”. “Eu tenho escutado algumas besteiras, dizendo que as praças da polícia são tendentes, isso é fabricado por alguns caras que gostam mais do Jair Bolsonaro, normalmente o pessoal inativo.”

As especulações sobre o recado por trás da troca de comando da Rota ganharam força por dois motivos. O primeiro, é a rejeição que Doria sofre dentro dos batalhões e delegacias. Na eleição que o levou ao Palácio dos Bandeirantes, em 2018, o tucano prometeu que os policiais militares de São Paulo seriam os mais bem pagos do país durante seu mandato. Porém, no primeiro ano de sua gestão, o governador ofereceu 5% de aumento salarial aos policiais. O percentual revoltou a categoria, que considerou baixo.

Major Olímpio confirma a má fama do governador entre os agentes. “No meio militar, não chove para cima. Há um ódio do efetivo da Polícia Civil e Militar contra o Doria. É algo que nunca vi na vida. Mesmo José Serra, Geraldo Alckmin e Mário Covas [ex-governadores de São Paulo], que arrebentaram com a polícia, ainda tinham uma certa consideração, agora o Doria é unanimidade. Há um ódio do efetivo da Polícia Civil e Militar contra o Doria. É algo que nunca vi na vida.”

Apesar da insatisfação da corporação com o governador paulista, segundo Olímpio, a motivação para a troca no comando não é política. “A promoção foi merecida, são dois excelentes homens e faz parte da rotina da Polícia Militar, o comando estava em ótimas mãos e seguirá assim”, finaliza o senador, que recentemente rompeu com Bolsonaro e é rival político do Doria, com quem trocou insultos no dia 13 de março, durante evento do Departamento de Operações Policiais Estratégicas (Dope). Os dois precisaram ser separados por seguranças.

Em nota, a SSP-SP informou que troca na chefia da Rota “trata-se de uma movimentação de rotina da Instituição, promovida com absoluta transparência e baseada exclusivamente em critérios técnicos e estratégicos estabelecidos pelo Comando da Polícia Militar.”

Por Bolsonaro até onde?

O segundo motivo para que a decisão da SSP tenha sido encarada como política por alguns, é a aproximação de policiais militares com Bolsonaro, o principal adversário de Doria, justamente no momento em que o presidente enfrenta uma crise política que tem como consequência uma fileira de pedidos de impeachment, perda de apoio popular e rompimentos com a base política em Brasília.

Para José Cláudio Alves, professor de Sociologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que estuda a estrutura policial há 26 anos, “é possível” que, diante da possibilidade de ser afastado da presidência, Bolsonaro conte com os policiais para permanecer no cargo.

Se essa estrutura policial e das Forças Armadas, bolsonarista né, se virem numa condição contra eles próprios, em função da defesa do presidente, eu vejo que isso é possível e plausível”, aponta Alves. “No Ceará, eles fizeram esse ensaio e no Rio de Janeiro eles já têm uma atuação independente, como milícia e grupo de extermínio, mas sempre com suporte da estrutura policial. Teria que emergir lideranças dentro deles, para que essas lideranças puxem um movimento desse tipo, de defesa dos interesses do Bolsonaro, numa situação de radicalidade. Todo esse envolvimento no projeto do Bolsonaro é para mantê-lo no poder, são quase 1 milhão de profissionais na área de Segurança, juntando policiais civis e militares.”

O sociólogo faz menção aos 13 dias de paralisação de policiais militares no Ceará, estado governado por Camilo Santana (PT), opositor de Bolsonaro. A paralisação teve contornos políticos e culminou na revolta do senador Cid Gomes (PDT-CE), que partiu com uma retroescavadeira para cima dos agentes, que revidaram e acertaram dois tiros no parlamentar.

“O que eles fizeram no Ceará, com apoio do Sérgio Moro [ex-ministro da Justiça], do chefe da Força Nacional [Aginaldo de Oliveira], foi um movimento controlado por grupos políticos. Tudo isso faz parte do projeto que está sendo construído. Todo esse envolvimento no projeto do Bolsonaro é para mantê-lo no poder, são quase 1 milhão de profissionais na área de Segurança, juntando policiais civis e militares, você tem uma importante base de sustentação por dentro das tropas”, argumenta Alves, que acredita que a troca de comando na Rota, em São Paulo, respeita outros valores, que vão além dos argumentos técnicos.

“Esse discurso aí de que o cara saiu porque não foi contemplado com promoção, ou dizer que ele saiu porque é natural, nada disso. Não há coincidências nesse campo, não há naturalidade, sempre foi assim, esses caras são movimentados de acordo com o interesse político”. Alves vai além e afirma que a onda bolsonarista dentro das corporações já teria extrapolado as fronteiras paulistas.

“Não só em São Paulo, em todos os estados da federação há uma força crescente do bolsonarismo, eles conseguiram uma estrutura de poder federal, eles conseguiram construir um projeto, há um discurso para esse grupo que controla a Segurança Pública. Compreenda bem, eles são especialistas em provocar dano à vida do outro, é isso que eles são, as Forças Armadas, as Polícias Militar e Civil, eles são grandes especialistas em provocar sofrimento ao corpo e vida dos demais. Eles matam, ferem e se impõem com a força. O discurso do Bolsonaro é feito para essa tropa de apoio. Em todos os estados da federação há uma força crescente do bolsonarismo, eles conseguiram uma estrutura de poder federal, eles conseguiram construir um projeto.”

Corporativismo

O sociólogo Michel Misse, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), considera que a eleição de agentes ligados às Forças Armadas e da estrutura de Segurança Pública deveria ser proibida. “Eles formam lobbies de interesses corporativos no Congresso e nas Assembleias Legislativas.”

Para Misse, o comprometimento de policiais com Bolsonaro não está descartado. “É difícil generalizar, mas tem sido apontado em alguns estados essa movimentação. No Rio de Janeiro, principal base das milícias, não tenho a menor dúvida que esse engajamento existe e trabalhou pela candidatura de Bolsonaro. Eu não tenho dúvidas de que as polícias vão atuar preservando a lógica democrática.”

Especialista em Gestão Pública, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani, afirma que entende a “tensão e apreensão” em torno do tema, mas refuta a possibilidade de envolvimento de policiais militares em um levante armado para defender Bolsonaro.

“Numa eventual tentativa de ruptura democrática do presidente Jair Bolsonaro, algo que parece que pode acontecer, dado o grau de agressividade com que ele trata a democracia brasileira, eu não tenho dúvidas de que as polícias vão atuar preservando a lógica democrática”, defende o docente. “O que talvez possa acontecer é que algum lobo solitário fazer algum tipo de ação individualizada, o que a Polícia Militar rapidamente debelaria”, finaliza.

Para comprovar a capacidade de articulação entre os agentes de Segurança Pública no país e sua disposição em atuar conjuntamente, o sociológo José Cláudio Alves recorda o assassinato do miliciano Adriano da Nóbrega, apontado como um dos líderes do Escritório do Crime, grupo acusado de cometer dezenas de crimes, e que manteve relações diretas com a família Bolsonaro durante mais de uma década.

“Policiais do Rio de Janeiro investigando um dos principais criminosos e milicianos do Rio de Janeiro [Adriano da Nóbrega] entram em relação com a polícia do Espirito Santo e com a polícia militar da Bahia, fazem uma operação, matam o cara. Como é possível? É possível porque eles têm uma rede interna de articulação que atua em defesa do grupo bolsonarista. É simples assim, eles vão articular essa rede e fazer com que funcione”, aponta Alves.

O advogado de Nóbrega, Paulo Emílio Catta Preta, em entrevista ao Globo no dia 10 de fevereiro, levantou a possibilidade de que seu cliente tenha morrido por saber demais. Porém, não especificou os segredos do miliciano. “Ele me disse assim: ‘doutor, ninguém está aqui para me prender. Eles querem me matar. Se me prenderem, vão matar na prisão. Tenho certeza que vão me matar por queima de arquivo’. Palavras dele”, afirmou o defensor.

Armados

Na reunião interministerial do dia 22 de abril, que teve seu vídeo divulgado após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro defendeu abertamente que a população esteja armada para fins políticos.

“Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se estivesse armado, ia para a rua.”

Em coluna publicada no Brasil de Fato, a ex-senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), analisou a fala do presidente. “Não é da maioria do povo pobre, simples, homens e mulheres trabalhadores do Brasil. Quando ele fala em armamento, ele fala em pessoas que tem condições de comprar armas e munições. Ele fala em armar milícias, ele fala em armar um forte bloco de apoio ao seu governo, de apoio à sua política contra a grande maioria do povo brasileiro. Você tem as pessoas dignas, que honestamente vão defender um discurso conservador e violento, mas tem todos aqueles que estão envolvidos no crime organizado, no tráfico de drogas, receptação de roubo, o arrego, além do leque de serviços e bens que a milícia monopoliza.”

José Claudio Alves lembra que o discurso feito por Bolsonaro capta o espírito das tropas e favorece o “conjunto dos policiais” e que estão armados e espalhados pelo Brasil. “Nesse conjunto, você tem as pessoas dignas, que honestamente vão defender um discurso conservador e violento, mas tem todos aqueles que estão envolvidos no crime organizado, no tráfico de drogas, receptação de roubo, o arrego, além do leque de serviços e bens que a milícia monopoliza. Os policiais militares fazem segurança dos bicheiros, compõem grupos de extermínio que vão defender latifundiário e o agronegócio, coronéis no interior, mineradoras e empreiteiras. Todos os grandes grupos econômicos, que montam um negócio no país que vai confrontar gente pobre, indígenas, ribeirinhos, caiçaras e quilombolas, vão usar esses grupos [policiais].”