“Políticos exageram impacto do Brasil sobre perdas agrícolas da França”, diz economista francês ao DCM

Atualizado em 1 de fevereiro de 2024 às 10:48
Tratores nas ruas de Rennes, na França, em protesto

A imagem de agricultores espalhando feno em uma loja do McDonald’s na França viralizou mundo afora. De menor repercussão, um prédio do Ministério da Transição Ecológica foi alvo de explosivos. Os atos são parte do movimento agrícola que bloqueia rodovias no país desde o último dia 18.

Mortalidade por suícidio e pobreza agrícola são algumas das denúncias dos manifestantes, que querem bloquear também o mercado de fornecimento de alimentos da capital.

Dentre outras reivindicações, eles querem a redução das normas ambientais, principalmente as proibições de pesticidas por parte da França e da União Europeia, assim como uma redução no preço do combustível e o poder de estabelecer os preços de seus produtos diante das grandes redes de supermercados, na prática nas mãos dos últimos.

Eles se estimam em concorrência desleal com os produtos mais baratos vindos do exterior, segundo eles submetidos a normas menos restritivas.

Em entrevista ao DCM, Vincent Chatellier, pesquisador no INRAE (Instituto Francês de Pesquisa Agronômica), descreve um movimento inédito. Um declínio que o economista vê como reflexo da livre concorrência de produtos agrícolas no interior da União Europeia. “Há dinâmicas produtivas em certos países europeus que finalmente penalizam a relação comercial da França com a Europa”, afirma.

“A Polônia, por exemplo, multiplicou por quatro nos últimos vinte anos a produção de carne de frango, ramo em que os brasileiros são líderes mundiais. Enquanto isso, a França diminuiu em 20% sua produção.”

O mundo político no país muda o foco e atribui a “concorrência desleal” aos produtos oriundos do Mercosul, em particular do Brasil, em um contexto em que o bloco negocia um tratado de livre-comércio com a União Europeia. Uma distorção, na visão de Chatellier.

“Há muito exagero sobre o suposto impacto do Brasil na perda de competitividade da agricultura francesa”, diz. “Hoje o Brasil é indubitavelmente um parceiro importante para a Europa, mas quantitativamente é um fornecimento muito limitado de produtos agrícolas. Talvez porque isso seja conveniente ao mundo político, ele alimente o desconhecimento sobre os fluxos comerciais com o Brasil.”

Num contexto de ira crescente, que começa a ganhar adesão de agricultores em outros países da União Europeia, estará a extrema direita em vias de capitalizar o movimento?

O perfil bolsonarista “O Patriota” diz no X que os agricultores em “toda Europa, estão levantando suas vozes e tratores para protestar contra a tirania de governos Socialistas e de esquerda, que ameaçam destruir não apenas suas formas de vida, mas também a segurança alimentar global.”

Na verdade, como indica Chatellier na entrevista ao DCM, é a política de concorrência do livre mercado europeu interno que prejudica o setor agrícola francês. Isto é, uma política do capitalismo e não do socialismo. Outro problema dos agricultores é o poder das grandes empresas de distribuição, que ditam os preços pagos da colheira. Além do mais, protestos em alguns países não correspondem a toda a Europa.

DCM: Estamos assistindo a um acontecimento comum na história francesa ou inédito?

Vincent Chatellier: Sempre houve manifestações. Somos um país acostumado a manifestações dos agricultores. Sempre houve nos últimos 50 anos momentos de crispação. No entanto, pela maneira como essa ira se manifestou é inédita nos últimos 20 anos.

Trata-se de uma ira que vem do interior do país e que conseguiu se difundir pelo conjunto da França, afetando todas as produções agrícolas. Frequentemente, as crises na França ocorriam por setor. Os produtores de cereais de um lado,depois os de laticínios ou os produtores de carne descontentes com a situação no mercado agrícola. Agora é muito diferente.

O que é inédito nesses últimos 20 anos é que a crise afeta todos os setores agrícolas ao mesmo tempo. Não por uma crise do mercado agrícola propriamente dito, mas pela maneira pela qual eles são considerados na sociedade e a maneira pela qual os poderes publicos europeus e francês interagem com as profissões deles. A orientação dessa ira é inédita.

DCM: Houve diversos atos de violência, como por exemplo a explosão de um prédio ligado ao Ministério da Transição Ecológica. Como avalia esse recurso à violência?

Vincent Chatellier: É uma violência moderada. É sempre bastante impressionante ver incêndios. Do meu ponto de vista, a violência é bastante contida. Há grandes tratores, colocam-se (barreiras de) palha.

Houve derivas, mas não há uma convocação à violência por parte dos sindicatos. Muitos agricultores não gostam. A situação esquenta e sempre há pessoas que acabam se excedendo e que podem ser reprovadas pelos próprios agricultores. Basta ver como são operadas as barragens nas rodovias. Há um movimento de expressão pública da ira.

Não se veem lojas vandalizadas, havia algumas garrafas derrubadas. Considerando a amplitude da repercussão midiática, a violência é bastante contida.

DCM: Não há um risco de contestação das estruturas democráticas, um movimento de derrubada?

Vincent Chatellier: Absolutamente não. Na França, há um sindicato (agrícola) bastante dominante, a FNSEA e que tem relações permanentes com o governo. Há um período de ira e tensão, mas não há nenhuma vontade dos agricultores e de suas organizações de impor uma bagunça irracional.

Há uma negociação, mas estamos muito longe de um movimento popular que chegaria a questionar o funcionamento democratico na França. Isso nunca aconteceu nos últimos 50 anos e não é o estado de espírito do momento.

Mesmo que eu compreenda que para o público que olha (a situação) a partir do exterior possa haver a sensação de que a violência está aí. Mas não se está nessa concepção.

DCM: O governo chegou a propor algumas medidas, que não foram suficientes para os manifestantes. O que eles querem finalmente? O fim das normas ambientais?

Vincent Chatellier: Não. Eles querem expressar uma ira. Há uma lista enorme, com 120 medidas. Algumas são aplicáveis, outras provavelmente nem um pouco. O Ministério da Agricultura, junto às autoridades europeias, devem escutar os agricultores e ouvirem por que eles estão em ira. Não penso que os agricultores franceses sejam contra a política agrícola comum. Eles são beneficiários. Eles desejam ser ouvidos.

Há uma administração pública excessiva na França. Há uma falta de sensibilidade camponesa na aplicação das normas europeias. Eles têm uma sensação de não serem ouvidos.

É mais do que dinheiro, que eles vão negociar. Eles já obtiveram um pouco. Ao mesmo tempo, os subsídios não são infinitos. Tampouco obterão bilhões de euros. Eles querem fazer-se ouvir e que na aplicação das regras a maneira como a profissão é vivida na prática seja melhor integrada nas normas.

Faz muito tempo que essa questão vinha emergindo na França. Eles tinham a sensação de estar rodeados de pessoas que não conhecem as obrigações e, com o passar do tempo essas regras se acumulam, tornando-se complicadas demais no cotidiano dos agricultores, exigentes demais na quantidade de papelada a preencher.

Isso não vai ser resolvido em dois dias. Eles jamais estão satisfeitos. Eles ficarão satisfeitos de terem expressado a ira. De resto, os agricultores com bom desempenho permanecerão assim, aqueles sem um bom desempenho, como em qualquer país, enfrentarão todas as dificuldades para continuar. Não há um agricultor médio na França.

Há uma diversidade muito grande nos resultados econômicos da produção agrícola. Há uma tendência no debate público a falar como se o mundo agrícola estivesse unido. Como em outros lugares, o mundo agrícola francês não é unido. Há agricultores que se saem bem economicamente e outros que enfrentam muitas dificuldades econômicas, que se expressam também uma ira em relação à economia de suas produções. Nem todos os agricultores têm certeza de poder continuar no ramo agrícola, como em outros lugares. É uma atividade econômica exigente.

DCM: Na mídia francesa, fala-se muito do Mercosul (nesse momento). Qual é o verdadeiro papel do Mercosul nesse contexto, quando são os seus grãos que alimentam a pecuária francesa e a França anunciou um veto ao acordo – negociado com a União Europeia?

Vincent Chatellier: Há muito exagero sobre o suposto impacto do Brasil na perda de competitividade da agricultura francesa. Hoje, na União Europeia, o Brasil representa 10% das importações alimentares e agrícolas. O Brasil é o primeiro fornecedor da União Europeia… Portanto, é um grande parceiro da União Europeia. Por outro lado, o Brasil não compra produtos europeus, pois 1% das exportações da UE é destinado ao Brasil. Portanto, há uma relação desequilibrada com o Brasil no plano comercial.

O Brasil tem muitos atributos. Ele fornece em condições muito vantajosas produtos muito úteis no estado atual do sistema produtivo, principalmente a soja. O que ocorre na Europa é que não se deseja assinar um acordo que conduziria a uma importação acentuada da carne bovina no mercado europeu, porque o consumo da carne bovina na União Europeia está caindo e a produção de carne bovina exerce um papel territorial extremamente benéfico.

Somos menos competitivos que o Brasil em relação à carne bovina e portanto a cristalização da ira não é pela soja, pois não a produzimos aqui. Precisamos por enquanto. A cristalização ocorre pela carne de frango e bovina. Consideramos que não precisamos importar demais desses países e preferimos desenvolver esse mercado no plano interno.

DCM: Então não é a produção de frango do Brasil que produz essa ira nos agricultores franceses hoje, mas produtos que vêm de outros países?

Vincent Chatellier: Atualmente na União Europeia, as importações de carne bovina vindas do Brasil foram divididas por dois e meio nos últimos dez anos. Então não se pode dizer que o Brasil é o responsável pela crise do setor bovino na Europa. Isso não é verdade, é exagerado demais.

O que há é um consenso no mundo da pecuária europeia para dizer que não desejamos aumentar nossas exportações de carne vinda do Brasil.  Essa é a razão pela qual os agricultores expressam sua oposição à assinatura de um tratado de livre-comércio que resultaria em um aumento das importações de carne.

DCM: Por que há esse exagero (relacionado ao suposto papel do Brasil nesta crise)?

Vincent Chatellier: O exagero é resultado do fato de que as pessoas conhecem pouco a realidade dos números dos mercados agrícolas. Nós, economistas, sabemos muito bem qual é o lugar do Brasil no fornecimento ao mercado europeu. Para os agricultores, quando se faz uma entrevista isso não é evidente.

Eles sempre têm muito medo do outro. O mundo político francês exagera consideravelmente o papel do Brasil no aprovisionamento ao mercado francês. Hoje o Brasil é indubitavelmente um parceiro importante para a Europa, mas quantitativamente é um fornecimento muito limitado de produtos agrícolas, com a exceção da soja, para os produtos que fabricamos aqui.

Em relação aos produtos exóticos, que produzimos na França, com o suco de laranja, é evidente que o Brasil fornece. Mas em relação à carne bovina, o Brasil está pouco presente. Esse desconhecimento na França é alimentado pelo mundo político, que raramente é preciso quando fala das relações comerciais entre o Brasil e a União Europeia.

Sempre há exageros. Todo o tempo há informações totalmente distorcidas e o resultado é a desinformação. Se você disser a um agricultor que a importação de carne bovina (proveniente do Brasil) foi dividida por três entre 2006 e 2023, o que é mensurável e informado na balança comercial europeia, ele não vai acreditar. Pensa-se que ocorre o inverso, que ela foi triplicada. Talvez porque isso seja conveniente ao mundo político, ele alimente o desconhecimento sobre os fluxos comerciais com o Brasil.

Vincent Chatellier

DCM: Quando a dinâmica que mais parece provocar essa dinâmica de ira seja a própria concorrência interna à União Europeia por meio da concorrência com produtos provenientes da Espanha?

Vincent Chatellier: Isso depende dos produtos. Isso é fato em relação às frutas. Quanto à França, os espanhóis são fornecedores de frutas, vinhos e carne suína. Nesses três setores, são nossos grandes concorrentes.

No caso francês, a dinâmica dos fluxos comerciais intra-comunitários (internos à União Europeia) são muito mais problemáticos do que extracomunitários. A balança comercial da França com os países intra-comunitários é negativa em três bilhões de euros em 2022. Quanto à relação da França com países não europeus, a balança comercial é positiva em onze bilhões de euros.

Há em particular dois países que puxam para cima a balança comercial da França: os Estados Unidos, em cinco bilhões de euros, e em segundo lugar a China, com cinco bilhões de euros. Com o Brasil, ela é deficitária, mas (o déficit) não se aprofundou muito porque certos produtos não são cada vez mais comprados do Brasil.

Por exemplo, as importações totais de soja vinda do Brasil caíram porque o capitel francês está diminuindo. Se a agricultura brasileira se desenvolve muito bem é porque ele tem um grande cliente na Ásia, a China, que exerceu um papel determinante na exportação brasileira de soja.

Contrariamente ao que se pensa, a Europa não foi o vetor de crescimento do Brasil nos últimos dez anos em soja. Foi a Ásia que captou o essencial do dinamismo exportador desse belo país que é o Brasil.

DCM: Os agricultores franceses revoltados são finalmente vítimas, na verdade, da concorrência interna da União Europeia?

Vincent Chatellier: Com toda a certeza. Há uma degradação da balança comercial com os países europeus. Há um forte crescimento de alguns países europeus agrícolas na Europa, principalmente da Polônia, da Espanha e da Irlanda, esta última na produção do leite. Há dinâmicas produtivas em certos países europeus que finalmente penalizam a relação comercial da França com a Europa.

O outro ponto é que não há dinâmica demográfica forte na Europa. Os clientes da França não têm uma maior necessidade de produtos agrícolas porque a dinâmica demográfica não é forte. Ela não é forte na Itália, nem no leste europeu. Um país que não tem crescimento demográfico não é um cliente com necessidades cada vez maiores. Outros países dinamizaram suas produções agrícolas mais rapidamente que a França. A Polônia, por exemplo, multiplicou por quatro nos últimos vinte anos a produção de carne de frango, ramo em que os brasileiros são líderes mundiais. Enquanto isso, a França diminuiu em 20% sua produção.

Há uma realocação da produção agrícola dentro da União Europeia, que, você tem razão, têm a tendência de desestabilizar o posicionamento francês, mesmo se, cabe lembrar, a França é um país agrícola muito grande. Apesar de todas as dificuldades e ira do momento, a França realiza 18% de toda a produção agrícola europeia, praticamente um terço da produção de trigo e 16% da produção de laticínios. Temos grandes déficits. O principal déficit é no setor de frutas e legumes, assim como o de peixes.

Não conseguimos encontrar uma solução para ser autossuficientes nesses setores de déficit. A livre-circulação de mercadorias na Europa, isto é, o fim das taxas aduaneiras no mercado europeu, faz com que a dependência de países parceiros possa se acentuar, como é no caso de frutas e legumes.

DCM: Essa é a explicação da situação de pobreza de agricultores que não conseguem pagar suas contas no final do mês?

Vincent Chatellier: Em todos os países do mundo há agricultores pobres. Segundo as estatísticas francesas, estima-se haver 18% de agricultores vivendo abaixo da linha da pobreza, enquanto para os outros setores esse índice é de 15%. Então há uma proporção um pouco mais elevada de pobreza na agricultura do que nos outros setores. Mas há também muitos agricultores que vivem uma vida confortável.

A dificuldade é que há uma disparidade muito grande. A renda entre os 10% mais ricos agricultores é cinco vezes maior do que os 10% mais pobres. No Brasil, vocês conhecem bem a heterogeneidade de desempenho e riquezas no setor agrícola. Nós a encontramos também na França.

DCM: Os grandes proprietários de terras constroem impérios e os pequenos morrem?

Vincent Chatellier: É ainda mais acentuado no Brasil do que na França.

DCM: Todos os partidos políticos tentam capitalizar esse movimento. Já é possível afirmar se esse movimento pende para um lado do espectro político, como o da extrema direita?

Vincent Chatellier: Acredito que não. Penso que a extrema direita tenta mobilizar argumentos para seduzir os agricultores, mas minha impressão é de que eles não vão conseguir. Pois os agricultores são globalmente europeus convictos. Claro que há 25%, entre os agricultores, que vota na extrema direita. Já era o caso há dez anos e eu apostaria que isso não vai chegar a 40%.

Todos os partidos tentam fazer valer seus argumentos. Fundamentalmente o meio agrícola é o da direita clássica na França, que mudou muito e se perdeu um pouco. Os agricultores são europeus convictos. Eles recebem subvenções demais da política agrícola comum para aderir tão rápido, como quer a extrema direita, a teses como a de que a escolha dos nossos amigos ingleses foi boa.

Muitas das interpretações da extrema direita, de que era preciso sair da Europa (da União Europeia), não são mais ditas hoje. Eles criticavam o euro e não criticam mais. Os agricultores na França não têm memória curta. Eu acredito que não (instrumentalização da extrema direita), ainda que haja muita agitação na mídia. Faremos o balanço depois das eleições europeias para verificar se os agricultores votaram na extrema direita.

DCM: Há uma verdadeira oposição entre ecologia e agricultura nesse movimento?

Vincent Chatellier: Eu não diria que haja uma oposição, mas um acerto de contas. Os agricultores europeus e franceses são as primeiras vítimas, no mundo inteiro, do aquecimento global. Eles não esperaram que os urbanos um pouco ecologistas lhes expliquem o que fazer. Os agricultores se adaptam permanentemente aos limites climáticos e ambientais. A consciência ambiental do mundo agrícola francês evoluiu muito nos últimos 20 anos. Eles são cada vez melhor formados nesse âmbito. Nessa geração, estão mais interessados no meio ambiente.

Não penso que se possa opor ecologia e agricultura. O que os agricultores não querem é que a produção de normas seja excessiva e que ela vá na contramão do bom senso camponês. Os agricultores querem uma relação de confiança. Eles querem considerar o meio ambiente e que confiem neles nesse movimento. Eles não querem que lhes imponham medidas impertinentes sob o pretexto de que vivemos um período complicado.

A política agrícola comum se orienta rumo ao meio ambiente. Mas os agricultores querem que isso seja feito de modo pragmático. Quando se diz politicamente que a agricultura orgânica na Europa seja 25% da superfície agrícola útil, os agricultores pensam que não é factível diante do estado do mercado, do nível de consumo e da inflação. Eles esperam um discurso ecológico compreensível e crível e que não sejam grandes discursos do que se deve fazer até 2050. Eles querem fazer ecologia no cotidiano sem precisar aderir a visões irrealistas.