POR RENAN ANTUNES, de Florianópolis
O clube de tiro ponto 38 é um templo do bolsonarismo: a maioria dos frequentadores é gente sarada, bombada, tatuada, de sorriso forçado e pistola na cintura.
Localizado a 10 minutos da ponte Hercílio Luz, cartão postal de Floripa, o clube ganhou, nos cinco meses do governo Bolsonaro, a notoriedade que jamais teve em 27 anos de existência, graças a dois frequentadores ilustres e um maldito.
Os notáveis são os filhos do Bozo, o Zero 2 Carlos e o Zero 3 Eduardo.
O infame é Adélio Bispo, o maluco da facada de Juiz de Fora, gesto que catapultou a candidatura de Jair à presidência.
Por mais que se busque, ninguém conseguiu estabelecer uma conexão dos filhos do presidente com o maluco, exceto pelo fato de terem estado ao mesmo tempo no 38.
Corre uma versão que o clube pertence aos Bolsonaros, que seriam sócios ocultos.
É fake news. Talvez a fonte desta informação seja a mesma que espalhou que os filhos de Lula eram donos da JBS.
Passei duas tardes entre os frequentadores comuns do lugar – tem gente que chega de Porsche!
O pessoal fica algumas horas dando tiros em alvos de papel, ao custo mínimo de 99 reais a saraivada de balas calibre 22. Os preços sobem de acordo com o calibre.
O público principal é gente da segurança, mas também encontrei advogados e universitárias dando tiros nos estandes, só pelo prazer da coisa: tem gosto pra tudo.
O “ponto 38” do nome da casa significa o calibre do velho três oitão, arma padrão da polícia brasileira das antigas.
O clube foi fundado em 1992 por um delegado de polícia de Santa Catarina, Tim de Lima e Silva Hoerhann.
Eu conheci o delegado Tim. Ele é descendente do patrono do Exército, Luiz Alves de Lima e Silva, nosso Duque de Caxias.
Uma pesquisa histórica feita pela família, exibida em quadros no clube, sustenta que ela está no ramo de armas desde o tempo das Cruzadas, dos cristãos contra os mouros, no século XII.
A linhagem inicia por um certo Ferdinand Brandon, cavaleiro normando, ancestral dos Lima e Silva.
O lado Hoerhann também era de armas: o delegado Tim descende do fidalgo Miguel, instrutor de artilharia do império austro-húngaro, professor de esgrima de salão e ginástica sueca no… Maranhão!
Mais: em 1904, Miguel assinou o horripilante livro “A esgrima de baioneta”, muito popular na época.
O delegado tem uma mancha inapagável na carreira. Nos anos 80, ele foi encarregado de guardar um pacote de joias de um joalheiro morto num acidente aéreo.
Quando o pacote foi aberto pelas autoridades, havia pedras e até um bloco de concreto. Tim foi punido por negligência, mas as joias jamais reapareceram.
Tim ergueu o 38 num galpão industrial, ao lado da uma oficina mecânica, em local hoje muito valorizado, no bairro Campinas.
O salão de tiros é isolado da rua por uma chapa de aço de 15 milímetros, capaz de deter o chumbo de qualquer das armas ali existentes. Pode abrigar seis atiradores ao mesmo tempo.
Em quase três décadas no anonimato, o local reuniu a nata dos atiradores das redondezas – isto é, quem ama dar tiros, policiais e seguranças de lojas.
Hoje, os irmãos Tony e Rafael, filhos do delegado, administram o 38. Nenhum deles tem formação militar ou policial, mas se vestem como se estivessem enfrentando tempos pós apocalipse.
Tony (38) é parrudo, luta jiujitsu com os lendários irmãos Gracie e dizem que até ensina os caras.
Tony também dá cursos à polícia da China comunista, treinou a segurança do primeiro ministro – o que faz com que entre no radar como uma possível conexão vermelha.
Mesmo com este currículo de amigo de comunistas, Tony é amigão dos filhos do Bozo.
A amizade começou antes do pai virar candidato. Vem dos tempos em que o Zero 3 entrou na Polícia Federal e fez curso de treinamento com Tony, evoluindo para o clube. O Zero 2 veio junto com o brother.
Tony adquiriu a ojeriza dos Bolsonaros à imprensa e não dá entrevista. Ele fica num salão acima do retrato do duque, espiando pela janela, enquanto o pessoal de marketing da casa fala com o repórter.
O guru civil dos Lima e Silva é Olavo de Carvalho. Recebeu da família a medalha de amigo da família, honraria cunhada pela própria família.
O herói da turma é Troy, um amigo de Tony, da SWAT do estado americano de Oklahoma. Ele vem de tempos em tempos e pá, pum, ensina os nativos a atirar no estilo americano.
Os caras amam muito os States. Tanto que o salão de jogos ostenta uma bandeira americana tamanho gigante, maior do que uma brasileira.
Do outro lado, estão as bandeiras, também gigantes, do xerifado de Oklahoma e do estado de Oklahoma – uma espécie de nirvana para atiradores.
O 38 tem uma lojinha de armas, pequena, mas bem movimentada.
É uma sala com espingardas calibre 12 e revólveres até o 45. Há carabinas AR15 como as usadas pelo exército americano (e pelos traficantes cariocas), numa versão popular, ao custo de 14 mil reais.
O negócio de venda de armas é legal, registrado no Exército. Qualquer um pode entrar, escolher a arma, manuseá-la, dar tiros para testar e sair com uma embaixo do braço, desde que atendida uma pequena burocracia – a casa faz tudo para o cliente.
O negócio só vende armas importadas. Carlos Souza, double de instrutor e vendedor, explica que “as nacionais Rossi e CBC só dão problemas”.
E aí está o tchã do 38: todos os papos giram, naturalmente, em torno de armas. Fala-se do coice que dá uma 12 ao disparar? O vendedor engatilha a arma mesmo sem balas e oferece: “Ouça o clique”, ensina. Pá, bate o gatilho.
Outra rodinha de papo é sobre o revólver Colt 45. Tratava-se de uma réplica, não pude apurar se era chinesa.
Mais papo: alguém viu um meliante num terreno baldio perto das lojas Koerich e queria saber se alguém poderia ir dar uma olhada, mas ninguém se escalou.
O salão de jogos, o mesmo onde está o memorial ao Duque de Caxias, abriga também a mesa de sinuca e um pequeno bar, quase sempre vazio.
“O nosso horário forte é depois do expediente, o pessoal passa por aqui e lota os estandes. Dão uns tiros para relaxar e vão para casa”, explica Carlos.
Como é relaxar dando tiros: a pessoa escolhe as armas (ou traz a sua de casa) e entra no estande de tiro. Bota óculos e protetores de ouvido. Aí, compra um pacote de balas, coloca um meliante de papel como alvo e pipoca nele.
Feito isto, ele recolhe o “morto”, confere os acertos e, se estiver num grupo, vai comentar os furos com os amigos. Se estiver sozinho, pode fazer um discreto gesto de “yes”, com o punho fechado.
Não achei muita gente disposta a puxar papo comigo no 38.
Me senti um zero à esquerda ao comprar o pacote básico calibre 22, com direito a um guaraná e uma barra de cereais, ao preço promocional de 56 reais.
Enchi de balas meu alvo – se fosse um meliante de verdade, estaria no mínimo num hospital, com o peito furado.
Saí do estande para um grupinho de instrutores. O papo era sobre Troy, o americano, com chegada prevista para sábado – era como se Zeus fosse descer do Olimpo.
O pessoal que frequenta a casa tem um figurino mais ou menos padrão, começando por uma botinha 3×4 e calças com bolsos laterais, coldre fabricado no próprio 38, lanterna e faca na cintura.
Surpresa: apesar de SC ter um baixo índice de violência, um em cada 422 habitantes do estado tem uma arma.
Do outro lado do 38, atravessando a avenida, temos o mar, com seu azul profundo.