Por morte de policial, PM “infernizava” moradores de Paraisópolis há um mês. Por Vinícius Segalla

Atualizado em 2 de dezembro de 2019 às 1:19
Moradores de Paraisópolis protestam aos gritos de “Assassinos!” contra a ação da Polícia Militar de São Paulo que levou à morte de nove pessoas

Perguntas a quem lê:

Como teria sido este domingo (1) se uma ação da Polícia Militar no Rock in Rio tivesse levado à morte de nove jovens? Nove jovens pisoteados. E se tivessem circulado neste domingo, pelas redes sociais, dezenas, ou talvez centenas de vídeos mostrando policiais em cenas e números variados, por exemplo chutando um espectador do Rock in Rio enquanto ele estivesse no chão? E, depois, se chegasse mais um policial na cena, com um cacetete, para ajudar o outro a espancar o espectador do Rock in Rio que estivesse no chão? Como teria sido o programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão? Alguém assistiu ao “Fantástico”?

Pergunta a André Lozano Andrade, criminalista, professor de Direito Penal, Coordenador de Direito Penal e Processo Penal da Comissão de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil), coordenador do Laboratório de Ciências Criminais do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais):

DCM: O senhor acredita que haverá punição a eventuais culpados? Ou a tendência, levando em conta episódios semelhantes anteriores, é de que essas mortes sigam impunes para sempre?

André Lozano Andrade: É provável que essas mortes fiquem impunes. Há uma orientação que vem do governador (de São Paulo, João Doria, o quarto de seu partido, o PSDB, que comanda o Estado, no poder desde 1995):  a polícia deve agir com força excessiva, com uso da violência, com letalidade e arbitrariamente. São reiteradas as declarações do governador no sentido de que os policiais que praticarem excessos devem ficar impunes.

Aliado a isso, há um histórico na polícia de que abusos cometidos contra população periférica não são punidos. Qualquer tipo de punição, dentro desse contexto, não é o normal.

DCM: O senhor, levando em conta o histórico de episódios semelhantes, acredita que abordagem da polícia teria sido a mesma se o episódio tivesse ocorrido em um evento frequentado por público de maior poder aquisitivo, como Rock in Rio, Skol Beats etc?

A.L.A.: É certo que se a aglomeração tivesse ocorrido em eventos frequentados pelas classes médias e altas isso não ocorreria. A polícia poderia ter atuado, mas utilizaria os protocolos para controle de multidões e com isso evitaria que houvesse agressões.

Assim, que fique bem claro: o que aconteceu só aconteceu porque o evento era evento de gente pobre, de favelado. Se fosse de gente rica, não aconteceria, como não acontece. O que aconteceu só aconteceu porque existe um governador que instiga a polícia a ser truculenta, que instiga a polícia a agir fora de seus protocolos, quando se trata de gente pobre.

Quando se trata de gente pobre, de evento de gente pobre, se cria até uma operação, a Operação Pancadão, para já estar pronta e atuando, a Polícia Militar de São Paulo, para coibir o Pancadão quando ele acontecer. A Polícia Militar de São Paulo exibe com orgulho os números da Operação Pancadão no mês de outubro, quando foram realizadas abordagens a bailes funk na capital, na Grande São Paulo e no interior do Estado:

A Polícia Militar realizou uma megaoperação Pancadão na sexta-feira (11), sábado (12) e domingo (13) para garantir o direito de ir e vir do cidadão e impedir a perturbação do sossego. As fiscalizações da emissão de ruídos provenientes de veículos aconteceram durante 390 operações deflagradas em todo o Estado.

Nos trabalhos em campo, 17.209 pessoas foram abordadas, resultando em 61 prisões e quatro apreensões de adolescentes. Também foram vistoriados 167 estabelecimentos comerciais e 6.567 veículos, resultando na remoção de 650 automóveis e no encontro de outros 29 roubados ou furtados.

As atividades permitiram a apreensão de 246 documentos, porções de drogas, nove armas, bem como o registro de seis atos infracionais e 23 boletins de ocorrência de crimes variados, sendo nove por tráfico de entorpecentes.

Quando for compilar os números de dezembro, já tem nove mortes de jovens garantidas.

 

DCM: É certo a polícia manter uma “Operação Pancadão”?

André Lozano Andrade: Não. Na realidade, a própria legalidade dessa operação é bastante questionável. Mostra que há uma criminalização de uma expressão cultural de parte da população brasileira, a parte pobre.

Criar uma operação com este nome, com o intuito de coibir um tipo específico de evento (baile funk), é criminalizar uma manifestação cultural, o que é proibido pelo princípio da lesividade. Isso porque a polícia deve coibir crimes. É para isso que serve a Polícia Militar. Ela não deve criar uma operação cujo próprio nome indica que serve para coibir um tipo exclusivo de evento, o Pancadão, o baile funk. Realizar e frequentar um Pancadão não é crime.

Então, esse tipo de ação policial é um fracasso por si só. Não busca coibir o crime ou chegar a criminosos, mas sim reprimir uma manifestação artística. Quando o objetivo da polícia não é coibir o crime, a ação sempre será um desastre, porque será ilegal

Assim, que fique bem claro: se a polícia toma conhecimento, seja por denúncia ou diligência, que um crime ou o distúrbio da paz está ocorrendo em um baile funk, deve coibir o ato delituoso, não o evento. Mas o que a polícia faz, com sua “Operação Pancadão”, ao chegar em um baile funk, é simplesmente arruinar o evento, colocar todas as pessoas ali presentes para aguardar horas para serem revistadas, para terem seus carros revistados. Muitas vezes, também, para terem suas caras esmurradas, seus corpos caceteteados.

Desta vez, também, para terem suas cabeças e corpos chutados e pisados por policiais enquanto estavam no chão.

 

Desta vez, também, para terem seus corpos pisoteados e morrerem.

 

DCM: Como pode uma ação policial ter sido tão desastrada? Qual pode ter sido o erro de procedimento na abordagem policial que levou a essas mortes?

André Lozano Andrade: Eu não consigo enxergar um cenário que contemple a hipótese de erro de procedimento. A polícia bloqueou rotas de fuga, atirou bombas de gás em uma multidão, gerou pânico, agrediu gente no chão. Não consigo vislumbrar um cenário em que toda a tragédia tenha ocorrido por imperícia da polícia. Tanto é assim que nada nem parecido ocorre em eventos das classes média e alta. A polícia deliberadamente desrespeitou seus próprios protocolos de atuação.

DCM: Apenas com os relatos, vídeos, versões e depoimentos que se tem até agora, é possível afirmar que a polícia é responsável pela tragédia?

A.L.A.: A polícia em muito contribuiu para essa tragédia. Se o objetivo era dispersar as pessoas, deveria ter deixado rotas de fuga para que os frequentadores pudessem sair do local sem muita confusão. Não foi o que ocorreu.

Assim, que fique bem claro: é a Polícia Militar de São Paulo, em seguimento à filosofia violenta e irregular que emana do governador João Doria, quem está com as mãos sujas de sangue. Se a polícia não tivesse feito o que fez, não tivesse atuado como atuou, não tivesse jogado bombas em uma multidão, não tivesse instalado o terror bloqueando rotas de fuga e chutando a cara de gente no chão, esses noves jovens não teriam morrido.

A Polícia Militar de São Paulo alega muitas coisas sobre o caso, ainda alegará outras mais. Enquanto esta reportagem é escrita, ainda não é meia noite do domingo para a segunda-feira, e a polícia já disse que foi ao baile funk na captura de bandidos que teriam atirado contra policiais. Eles teriam se misturado às 5.000 pessoas que estavam no baile e então a polícia teria optado por tacar bomba em todo mundo. Já disse também que estava ali para realizar mais uma abordagem ostensiva da “Operação Pancadão”, e que fora recebida a garrafadas, e então resolveu tacar bomba em todo mundo

A Polícia Militar de São Paulo, até agora, não disponibilizou um porta-voz para atender a imprensa que busca informações acerca do assunto. Se comunica por meio de notas, que dizem o que foi acima. Sobre os vídeos de policiais chutando gente no chão, ainda não disse nada. Sobre rotas de fuga bloqueadas, ainda não disse nada.

A Polícia Civil de São Paulo, por sua vez, já manifestou algumas conclusões e convicções. O delegado Emiliano da Silva Neto, do 89º DP, afirmou que as nove pessoas mortas foram vítimas de pisoteamento, nenhuma por tiro. Disse também, em entrevista à imprensa, de acordo com o que ele e sua equipe já apuraram:

Policiais militares pararam duas pessoas em uma moto. Eles entraram dentro de onde estava ocorrendo a festa e continuaram atirando nos policiais (de acordo com a Polícia Militar, os policiais não deram sequer um tiro). Em decorrência desse tiroteio (em que só um lado teria atirado), houve um efeito manada, teve uma viela com escadaria e as pessoas pisotearam uma nas outras e nove morreram.

Em um primeiro momento não foi verificado nenhum abuso, nenhum excesso por parte deles [policiais]. Tudo o que ocorreu foi uma fatalidade por causa do problema do pancadão.”

Não existe vídeo ou testemunho de pessoas atirando em policiais. O delegado Emiliano mal começou a ouvir testemunhas e assistir às dezenas, talvez centenas de vídeos mostrando a ação da Polícia Militar de São Paulo, mas já tem uma convicção: “Tudo o que ocorreu foi uma fatalidade por causa do problema do Pancadão.”

A Polícia apavora a favela de Paraisópolis há um mês

No dia 1 de novembro deste ano,  na favela de Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, um policial militar foi morto durante um tiroteio. Segundo a Polícia Militar de São Paulo, o sargento Ronaldo Ruas Silva, de 52 anos, da Força Tática, foi baleado por suspeitos após uma abordagem que terminou com troca de tiros. Ainda segundo a polícia, um dos suspeitos também morreu e outros dois fugiram.

No dia seguinte, a Polícia Militar de São Paulo realizou uma operação de busca e captura na favela. Segundo informou a corporação naquele dia 2 de novembro, “centenas de policiais militares do Policiamento de Choque, do Policiamento de Trânsito, do Comando de Aviação e dos Batalhões da zona Oeste intensificarão o policiamento para combater o tráfico no local e prender criminosos, sem previsão de término“. Um veículo blindado foi usado.

A partir daqui, a reportagem não identificará os autores das respostas que seguirão abaixo, muito embora um deles tenha expressamente pedido para que seus nome fosse publicado. É que a reportagem não quer publicar nomes e depois assistir a essas pessoas serem mortas.

DCM: Por que você acha que aconteceu essa tragédia?

Morador 1: Eu não sei, só sei que depois que morreu o PM no mês passado, nossa vida virou um inferno. A polícia vem aqui todo dia. É só esculacho. Fecham as ruas, fecham os bares, dão muito tapa, soco na cara. Eu quero que achem logo quem atirou no polícia, para isso tudo acabar. Se não, vai morrer mais gente.

DCM: Você sofreu algum tipo de violência da polícia nos últimos dias? A senhora tem 55 anos, não tem passagem…

Moradora 2: Isso não tem nada a ver! Esculacho é geral. Na sexta-feira agora, cheguei do trabalho à noite, não me deixaram entrar na minha rua para ir para casa, diz que estava fechado, eu dei uma volta de meia hora pelo caminho que ele mandou, fui reclamar, tomei um tapa na cara. Eles batem em mulher também, filho, não tem nada a ver, não.

Na final da tarde do domingo, o governador João Doria falou sobre o assunto em sua conta de Twitter: “Lamento profundamente as mortes ocorridas no baile funk em Paraisópolis nesta noite. Determinei ao Secretário de Segurança Pública, General Campos, apuração rigorosa dos fatos para esclarecer quais foram as circunstâncias e responsabilidades deste triste episódio”.

Nenhuma palavra de condolência às famílias. Nenhuma crítica à ação da Polícia Militar de São Paulo. Só a promessa de que tudo vai ser rigorosamente apurado. Quem acredita que será?