Por que a elite brasileira odeia e persegue Cuba. Por Maurício Falavigna

Atualizado em 17 de julho de 2021 às 9:46
Havana, capital de Cuba

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO PORTAL RECONTA AÍ

Tinha uns sete ou oito anos, era domingo, meados dos anos 70.

Um bar na Baixada do Glicério, acompanhando meu pai logo após seu jogo na várzea. Entre cervejas, petiscos e o meu refrigerante tão esperado, olhos e ouvidos abertos para as falas adultas.

Gente simples, remediada, que dava duro na semana. Um cara grande entra no bar e pede sua cerveja com autoridade. Dois minutos depois fala alto, “os cubanos são proibidos até de viajar para o estrangeiro”.

Poucos segundos de silêncio, escuto a voz do meu pai: “ah, sim, porque você vai pra Europa com a família este ano, como todo mundo aqui”. Na sequência, um senhor de idade, retinto e sem dentes, com o copo de cerveja nas mãos trêmulas: “Não tem nem como pagar a pinga e tá preocupado com férias de cubanos”. A plateia rindo alto, o primeiro sujeito indo embora, carrancudo.

Boa parte do lamento da mídia a que hoje assistimos é mais prolongamento do que novidade. Divulgação de notícias falsas, disseminação de ladainhas e comportamentos conservadores, destruição de reputações, predominância de temas afeitos à moralidade e aos costumes e, finalmente, o fantasma do comunismo justificando quebras institucionais por parte de militares, mídia, igrejas e empresariado.

Uma união que não é inédita. Se nos anos 60-70 a palavra “comunismo” era mais corrente, hoje a defesa do livre mercado e a criminalização de regimes não alinhados aos norte-americanos são os motes para a propaganda ideológica.

Assistimos a uma deterioração crescente das condições de vida no País e, ao mesmo tempo, uma tentativa da mídia de mostrar um movimento libertário em Cuba, com as indefectíveis análises que exibem aos brasileiros uma oposição entre regimes não alinhados ao mercado e a democracia.

Nada se compara ao ódio a Cuba no arcabouço da ideologia dominante, é uma ferida exposta no corpo do Império há mais de meio século.

A fala clara de Diaz-Canel, ecoada na ONU, não encontra espaço nos meios brasileiros: “entre abril de 2019 e março de 2020 Cuba perdeu 5 bilhões de dólares em comércio potencial devido ao bloqueio; nas últimas quase seis décadas, perdeu o equivalente a 144 bilhões de dólares”.

Agora, o governo Biden impõe mais sanções aos navios petroleiros que abastecem Cuba. É óbvio que a insatisfação popular cresce em circunstâncias de crise. Mas os destaques da mídia nacional nunca partem do bloqueio. E dão relevo às mortes na pandemia – insignificantes perto do que vivemos; ao racionamento de alimentos, enquanto retornamos ao Mapa da Fome… Mais assombroso: a própria mídia que tramou, apoiou e silencia até hoje sobre os golpes do impeachment e da Lava Jato, aponta a “ausência de democracia” em Cuba. O que é relacionado à ausência de “liberdade”.

A verdade é que Cuba possui melhores índices em IDH, qualidade de vida e desigualdade do que conhecemos.

Não fosse o socialismo cubano, teríamos outro Haiti, Guatemala ou Honduras no Caribe. Possui melhores índices educacionais e de saúde. Não há moradores de rua ou violência urbana significativa. Mas nos é descrita como uma tirania que reina sobre uma favela. A disparidade produzida no imaginário coletivo é imensa, cínica e covarde. Reduz-se o país a um lugar onde não são todos que podem ter perfil no Facebook e nem escolher a marca do iogurte.

Em 1982, no início da adolescência, ganhei um exemplar de A Ilha, de Fernando Morais, lançado seis anos antes. Lembro-me de que, ao ler sobre as garantias sociais dos cubanos, comentei com um professor: “Acho que nunca vi antes liberdade tão grande, não precisar se matar pelas coisas mais básicas de sobrevivência”. E ouvi um discurso severo sobre as tecnologia, progresso, liberdade de imprensa e aquilo por que todos nós estávamos lutando então, o direito de votar.

Em Cuba os representantes são eleitos em Assembleias Populares, qualquer cidadão pode se candidatar.

A última Constituição foi votada em 2018, após convocação para uma Constituinte. Certamente há inúmeras maneiras de se aprofundar a democracia e a participação, e é legítimo que lutem por isso (com autonomia).

Mas lá a democracia não é o simulacro de um conceito nascido entre 20 mil cidadãos que contavam com meio milhão de escravos e agregados para sobreviver. Longe de nossa realidade, não é uma garantia de preservação da minoria, de suas propriedades e privilégios. Até pelo aprofundamento da vivência e da participação políticas, cubanos podem trilhar seus caminhos com uma altivez que desconhecemos.

Por sinal, não vimos a presença de militares reprimindo manifestações. Ou de manifestantes depredando patrimônio público. Quem procurou nas redes viu imagens de muitos cubanos contrários à manifestação e culpando o bloqueio norte-americano pela crise.

Não vimos cenas como de grevistas massacrados ou manifestantes sendo arrastados para camburões. E não há liberdade.

Quem quiser conhecer a continuidade das ações de financiamento do pensamento anticomunista no Brasil, pode procurar Moniz Bandeira, “Presença dos Estados Unidos no Brasil” e Geraldo Catarino, “Segredos da Propaganda Anticomunista”. Ou assistir ao documentário “O Dia que durou 21 anos”, de Camilo Galli Tavares. Verá o financiamento norte-americano do IRD, as ações da CIA, as organizações da reação brasileira, como o complexo IPES/IBAD, a ideologização das Forças Armadas brasileiras. Mas irão conferir que, se a estrutura de comunicação foi alterada pela tecnologia e pelo alcance global, os objetivos são os mesmos.

A associação do mercado à liberdade, a garantia de sobrevivência da minoria como um direito moral, a superioridade natural do direito à propriedade e dos donos do poder. Mudaram os meios, modernizaram a roupagem, os medos são os mesmos.

Encerrando com outra memória, mais recente. Há uns sete anos, trabalhando no Sudoeste paraense, fiz matérias sobre um bairro novo, construído para retirados de palafitas. Em meio às casas novas, um Posto de Saúde.

Os equipamentos estavam para chegar, mas os médicos chegaram lá. Cubanos. E começaram a trabalhar, sem terem as instalações prontas. Fui conversar com aqueles filhos da Revolução que passaram a maior parte da vida sob dificuldades decorrentes do fim da URSS e da permanência do bloqueio. Perguntei o que fariam, pois o PS ainda não estava equipado. “Conhecer pessoas”.

Iam de casa em casa saber nomes, comorbidades, necessidades familiares, plantas que utilizavam para cada doença. Criaram atividades físicas e recreativas para pessoas mais velhas, se alegravam brincando no chão com as crianças. “Vamos recolhendo os perfis para o trabalho que teremos adiante, avançamos no que podemos”. E o salário, boa parte enviado ao governo do país? “Vivemos bem, temos o que precisamos, fazemos o que gostamos. Ajudamos nossos irmãos, é prazeroso. Somos felizes aqui”.

Quando descobrirmos a gente sem liberdade que a Revolução fez nascer e crescer, talvez irrompa uma certeza de que não vale a pena viver de joelhos.