Por que a Globo escolheu as Ilhas Virgens para sediar uma empresa fantasma, segundo nosso enviado

Atualizado em 6 de fevereiro de 2015 às 16:41
Sede da empresa que administrava a offshore da Globo
Sede da empresa que administrava a offshore da Globo

 

Road Town, a capital das Ilhas Virgens Britânicas, é como uma pequena cidade do litoral brasileiro. Só que muito mais rica, e com morros cobertos de vegetação verde escura, e não casas amontoadas, como costuma ocorrer em muitas cidades do litoral brasileiro.

Ao contrário, as casas no alto dos morros em Road Town são grandes, distantes umas das outras, e com mais de um carro na garagem. Eu notei outra diferença logo depois que atravessei o portão da imigração, no pequeno porto da cidade, e caminhei pela rua principal.

Muitos prédios têm placas de bancos, empresas de seguro e outras de suporte e intermediação de negócios, como Scotiabank, National Bank of The Virgin Islands, First Caribbean Internacional Bank e Sotheby’s.

A presença dessas empresas mundialmente famosas é a face visível de uma economia baseada na manutenção de empresas que existem apenas no papel, como é o caso da Empire Investment Goup Ltd., a companhia que os donos da Rede Globo abriram ali em 1999, com o objetivo exclusivo, segundo a Receita Federal, de sonegar o imposto devido pela aquisição dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.

No caso da Globo, a placa que reluz é a Ernst & Young, que, depois de criar e administrar a empresa de papel da Globo, vendeu sua carteira para a Tricor e passou a se dedicar a serviços contábeis. Os clientes são os mesmos: empresas de papel.

Offshore é o nome que se dá a essas empresas. O significado literal é “afastado da costa”, um trocadilho sobre a natureza dessas sociedades empresariais, que ficam longe de suas matrizes, e um termo usado na indústria petrolífera – offshore é como são chamadas as operações de extração de petróleo longe da costa.

A indústria do petróleo foi a primeira a usar pequenos países estrangeiros para contornar obrigações legais. Há mais de 50 anos, gigantes do setor abriram empresas de transportes em países como o Panamá.

Vendiam o petróleo a preço baixo para essas companhias (que eram deles mesmos), que o revendiam a preço elevado, mas em país de tributação favorecida. Além disso, caso houvesse acidente, o prejuízo seria menor, já que as empresas de transporte não tinham patrimônio para ser usado em caso de indenização.

O negócio deu tão certo que logo mafiosos, traficantes de drogas e de armas, corruptos e sonegadores começaram a fazer o mesmo, aproveitando que, nestes países, a propriedade real da empresa é mantida em sigilo.

Bancos grandes, como o Chase Manhattan, abriram filiais nestas localidades, incentivados pelas autoridades monetárias de seus países, interessadas em manter sob sua jurisdição os dólares obtidos de negócios ilícitos. Logo, o país de refúgio passou a ser chamado “paraíso fiscal”.

Em 1986, as Ilhas Virgens Britânicas, até então apenas um local de intenso turismo e endereço de lazer de milionários norte-americanos, começaram a admitir o registro de empresas offshore e ofereceu vantagens, como tributação zero, desde que a empresa mantivesse ali apenas registros, não atividades reais.

Ilhas Virgens é um território ultramarino britânico, seus moradores são súditos da Rainha Elisabeth, assim como os ingleses, mas têm autonomia administrativa. A moeda oficial é o dólar, o que mostra a influência dos vizinhos Estados Unidos.

Sobrou pouco da cultura inglesa, como os automóveis circulando na pista da esquerda, assim como na Inglaterra. Mas a maioria dos carros usados aqui é fabricada nos Estados Unidos, e tem volante também no lado esquerdo do veículo, o que provoca alguma confusão a quem não está acostumado. Mão inglesa com carro americano.

Talvez por isso é que existam algumas placas avisando: mantenha-se à esquerda. Outra placa curiosa é a que informa a rota de tsunami.

Os moradores contam que nunca houve ondas gigantes por lá, mas, depois da tragédia de 2004 na Ásia, a administração pública decidiu indicar a rota de fuga, em caso de tsunami.

A direção é o alto do morro, de onde se tem uma visão belíssima das Ilhas Virgens. São muitas. Tanto que o primeiro europeu a chegar aqui, Cristóvão Colombo, em 1493, deu ao local o nome de Santa Úrsula e Suas Mil Virgens.

No local, viviam índios, depois vieram espanhóis, holandeses, dinamarqueses, ingleses e americanos. O pirata inglês Edward Teach,  conhecido como Barba Negra, viveu por aqui. Segundo a lenda, Road Town era a base de onde Barba Negra saía para atacar navios franceses.

Com o ciclo da cana, vieram os escravos negros, para trabalhar nas fazendas locais. Com a liberdade, houve uma reforma agrária, e os negros passaram a ter pequenas propriedades.

A história das Ilhas está contada em uma grande pintura, no alto de um morro, ponto turístico dos milhares que vêm aqui todas as semanas, muitos deles em cruzeiros marítimos.

 

Aviso de tsunami
Rota de fuga de tsunamis

 

O dinheiro do turismo e das taxas de empresas atrai também pequenos comerciantes e trabalhadores do mundo todo. Conversei com um jovem que veio de Granada, e trabalha em um resort. Recebe cerca de 2.500 dólares, o salário mínimo daqui, e nas horas vagas vende cup cake perto de uma marina: 2 dólares cada um.

A renda extra se justifica: o custo de vida nas Ilhas pode ser dimensionado pelo preço de um litro de suco de laranja no supermercado: o equivalente a 15 reais.

Uma amiga dele, funcionária de uma marina, ficou impressionada ao saber que, no Brasil, o salário mínimo é de 300 dólares.

“Vi o filme ‘Rio’ e tenho vontade de conhecer seu país. Mas, com esse salário, deve ter muita gente pobre lá.”

Em uma praia, vi a bandeira brasileira, colocada ao lado da bandeira das Ilhas Virgens Britânicas numa barraca que vende suvenires. “Os brasileiros são muito bons, amigos, gosto deles. Mas não gostaria de morar no seu país. Soube que tem muitos ladrões nas ruas”, diz o dono da barraca, que usa uma bandana de pirata.

Numa quadra comercial, o dono de uma loja de acessórios para celulares, conta que veio da Palestina às Ilhas Virgens por causa dos dólares. “O poder de compra é alto”, conta.

O vietnamita Pituong Nguyen saiu da cidade de Camau para abrir um restaurante de comidas rápidas, tipo bandejão, mas sem balança, onde o prato mais barato sai por R$ 24,00 – preço incrivelmente baixo para os padrões locais.

De domingo a domingo, atende turistas do mundo inteiro e também moradores da ilha, muitos imigrantes como ele.

Domingo de manhã, em Road Town, veem-se homens e mulheres bem vestidos, descendo dos carros de terno e vestidos longos, para ir a uma das muitas igrejas locais. A maioria é protestante, mas há também católicos e anglicanos.

Uma faixa perto do centro esportivo anuncia um festival gospel.

A religião ocupa um grande espaço nesta pequena cidade, onde os homens de negócios nem precisam vir para abrir ou movimentar suas empresas.

Todo o serviço é feito por procuradores. O representante da Empire Investment Group, por exemplo, assinou o termo de venda da empresa por 229 milhões de dólares à Rede Globo.

O mesmo documento tem a assinatura dos procuradores de outra empresa de paraíso fiscal, a Globinter Investments, das Antilhas Holandesas, controladora da Empire.

Como compradores, assinam Roberto Irineu Marinho e João Roberto Marinho, donos da TV Globo. Oficialmente, a Globo estava ampliando sua atuação no mercado internacional de televisão.

Na verdade, as três empresas eram da mesma família Marinho. O contrato era apenas uma manobra para esconder da Receita Federal os impostos devidos pela aquisição dos direitos de transmitir a Copa do Mundo de 2002 para o Brasil.

Com suas praias belíssimas, Road Town poderia até ser cenário de novela, mas, em termos de qualidade de produção de TV, a Globo não teria nada para comprar ali. Muito menos por 229 milhões de dólares em dinheiro da época.

Como a Receita Federal descobriria mais tarde, o contrato que tem a assinatura dos filhos de Roberto Marinho era pura ficção, nada mais natural no país onde o slogan oficial é “Ilhas Virgens – Segredinhos da Naturieza”.

 

O "endereço" da "Empire": empresa da Globo nunca funcionou aqui
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