Criminalização da pobreza: Por que a intervenção militar no Rio está condenada ao fracasso

Atualizado em 10 de abril de 2018 às 10:16

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA DA CAASP

Por Paulo Henrique Arantes, Joaquim de Carvalho e Karol Pinheiro

Segundo o artigo 144 da Constituição, cabe à Polícia Militar o policiamento ostensivo, uniformizado, também chamado preventivo. Dada a divisão do trabalho ditada pelo mesmo artigo, que atribui a investigação com exclusividade às Polícias Civis, resta aos policiais militares, quando se lhes cobra produtividade, fazer o quê? Prender e apreender drogas e armas. Prender que tipo de transgressor? Atuar contra quais delitos? Se o dever é produzir, se produzir é sinônimo de prender e se não é permitido investigar, o que sobra? Prender em flagrante. Quais são os crimes passíveis dessa modalidade de prisão? Aqueles que podem ser identificados, empiricamente, pelos sentidos, a visão e a audição, e que ocorrem em espaços públicos. Não é o caso de lavagem de dinheiro e da maior parte das transgressões perpetradas por criminosos de colarinho branco. O varejo que supre a cota de prisões da PM é composto por personagens que agem na rua, cuja prática também segue a lógica do varejo: batedores de carteira, pequenos vendedores de drogas ilícitas, assaltantes de pontos de comércio, ladrões de automóveis etc. Quais são, em geral, os atores sociais que cometem esses delitos? Com frequência, jovens de baixa escolaridade, pobres, moradores das periferias e favelas(…). O nome desse processo é criminalização da pobreza.

      O trecho acima, publicado no blog da editora Boitempo, é da lavra de Luiz Eduardo Soares, escritor, cientista político e antropólogo. Foi secretário nacional de Segurança Pública durante o Governo Lula e secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro durante o Governo Garotinho. Foi ele quem cunhou o termo “banda podre” para classificar parte da polícia fluminense.

      A lógica do prêmio por flagrante, é pacífico, tende a oprimir a população mais humilde que às vezes comete ilícitos por falta de alternativas de sobrevivência. A questão é: como uma polícia pouco treinada, mal remunerada e mal equipada pode combater o crime sem violar direitos humanos? Concomitantemente, situações crônicas como a do Rio de Janeiro exigem operações contundentes, mas quem está preparado para tais ações? O Exército? Um mês após o início da intervenção no Rio, não há sinal de que os militares possuam know how para tanto.

      O primeiro legado importante da intervenção federal via Exército no Rio de Janeiro foi a execução da vereadora do Psol Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Pedro Gomes, em uma emboscada no bairro do Estácio de Sá. O caso, de apuração ainda inconclusa se não incipiente, ganhou repercussão mundial – Marielle era uma estridente defensora dos direitos da população moradora das favelas e contumaz denunciante de abusos policiais e da atividade de milícias. Observe-se que a vereadora, em diversas ocasiões, também saiu em apoio a famílias de policiais assassinados.

      Num breve parêntesis, vale registrar que, de janeiro a março de 2018, conforme reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”, 12 ativistas sociais foram mortos em aparentes crimes de mando no Brasil. Nos últimos cinco anos, foram 194.

Marielle Franco. Foto: Wikimedia Commons

      A intervenção federal via Exército, para alguns uma forma de o presidente Michel Temer apossar-se da bandeira eleitoral da segurança pública, foi duramente criticada pela ONU e pela Anistia Internacional, com base em experiências anteriores fracassadas.

      “O uso repetido de força letal sugere o fracasso do governo brasileiro em tomar medidas de precaução para impedir a perda de vidas”, diz comunicado interno da ONU assinado por Agnes Callamard, relatora especial sobre Execuções Sumárias, Sabelo Gumedze, chefe do Grupo de Trabalho sobre Povos de Descendência Africana, e Dainius Puras, responsável pela relatoria em Direito à Saúde. O comunicado baseia-se na execução de cinco menores no Rio de Janeiro entre março e julho de 2017, e externa o temor de que, com o incremento do uso das Forças Armadas, quadros desse tipo se repitam.

      “O Governo Federal já tinha anunciado um plano de segurança pública no início do ano passado (2017), que não foi colocado em prática. A atual intervenção (no Rio) me parece uma medida inadequada e extrema que coloca em risco os direitos humanos da população, sobretudo da população mais pobre, das favelas e das periferias”, afirmou Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil.

      Enquanto o interventor federal no Rio de Janeiro, general Walter Braga Netto, revela-se um quadro técnico cumpridor de tarefas, o que conta ponto a seu favor, as duas principais lideranças militares do país têm visões conflitantes sobre o tema, embora panos quentes não faltem para impedir a eclosão de um confronto aberto entre elas. Para o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, o uso banalizado das Forças Armadas nas missões denominadas GLO, de garantia da lei e da ordem, é temerário, posto que os soldados não são treinados para esse tipo de atividade. Já o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, acha que os militares são capazes de cumprir quaisquer missões que lhes forem dadas, nem que para tanto se recorra a aberrações jurídicas como mandados coletivos de captura, busca e apreensão, ideia cogitada e em tempo abortada.

      Salta aos olhos o fato de o Rio de Janeiro não ser dono dos piores índices de criminalidade do país – nem mesmo o último Carnaval, cujas ocorrências violentas foram o estopim da intervenção, foi mais violento que sua edição anterior.

      Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as maiores taxas de morte violenta são observadas em Sergipe (64 para cada 100 mil habitantes), Rio Grande do Norte (56,9 para 100 mil) e Alagoas (55,9 para 100 mil). Entre as capitais, as maiores taxas de assassinatos são registradas em Aracaju (66,7 para cada 100 mil habitantes), Belém do Pará (64 para 100 mil) e Porto Alegre (64,1 para 100 mil). No Rio de Janeiro, o índice de assassinatos é de 37,6 para cada 100 mil habitantes, e em São Paulo a taxa é de 11 para cada 100 mil.

      “Em termos concretos, o espaço que a intervenção tem para atingir seus objetivos é bastante reduzido. Cria-se uma expectativa muito grande na população, que sem dúvida nenhuma está desesperada diante do medo e dos índices de insegurança, mas na prática os desafios são muito grandes para o interventor”, afirma o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. “Nós deveríamos privilegiar novas estratégias de funcionamento institucional, de combate à corrupção, o fim das indicações políticas para os batalhões, uma série de medidas que tem a ver com o que eu chamo de uma nova governança do sistema de segurança pública e justiça criminal”, propõe, e pontua: “A doutrina militar não preza exatamente pela transparência. Em geral, preza pelo sigilo, pela reserva”.

      A Constituição Federal, observa Lima, não define segurança pública nem ordem pública, tanto menos as diferencia. A Carta apenas indica quais instituições podem promover segurança pública e, no artigo 144, cita as polícias e desconecta Ministério Público e Poder Judiciário de um engajamento intensivo. “Boa parte das instituições que o artigo 144 arrola como sendo responsáveis pela área funcionam com base em normas e legislações infraconstitucionais anteriores à própria Constituição. A Polícia Militar funciona com uma legislação de 1979. Nosso Código Penal e nosso Código de Processo Penal são da primeira metade do século passado. Em nenhum momento nós fomos ao Supremo Tribunal Federal para saber se essa legislação infraconstitucional foi recepcionada pela Constituição”, protesta Lima, que é cientista social e professor da Fundação Getúlio Vargas.

      O fluxo do sistema de justiça criminal e segurança abdica equivocadamente de técnicas de investigação. “Não se pode viver de flagrantes: se eu prender um ‘criminoso’ hoje, amanhã surge um substituto se eu não atacar, por exemplo, o ponto da receptação e a distribuição dos produtos roubados e furtados”, observa Renato Sérgio de Lima. “A grande questão é: nossas organizações policiais e de segurança estão muito mal estruturadas para fazer frente ao dilema da violência contemporânea, às novas formas de criminalidade, sejam elas organizadas ou não”, enfatiza.

      A desorganização das forças policiais – é notória a rivalidade e a ausência de cooperação entre as Polícias Civil e Militar – é vista como uma das responsáveis pela ascensão da violência urbana também na opinião do coronel PM José Vicente da Silva, que foi secretário nacional de Segurança Pública durante o Governo Fernando Henrique Cardoso. “Na estrutura atual, a desorganização que caracteriza as polícias e o grau de corrupção grave que se vê particularmente na Polícia Militar incapacitaram essas forças para fazer frente não só ao crime organizado, que não é tão organizado assim, mas também aos crimes comuns de rua, que estão aumentando em termos de roubos e de homicídios que acontecem longe do tráfico e que vêm vitimando a população”, constata.

      No caso específico do Rio de Janeiro, Silva declara-se favorável à intervenção federal por meio do Exército. “Um dos aspectos que justificam a intervenção é a submissão da população de ao menos uma centena de comunidades ao crime organizado, em locais onde o Estado nem sequer leva suas rédeas. São populações submetidas à força bruta e comandadas pelo crime”, salienta, ressalvando: “Nada será resolvido num curto espaço de tempo, mas esperamos que comece um processo de rearticulação das forças policiais no estado”.

      Segundo José Vicente da Silva, o secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro “não tinha a força necessária” para organizar as polícias e combater o crime, “nem o próprio governador”. As razões da tibieza governamental são várias e imbricam-se com a falência financeira fluminense: “A Polícia Civil tem uma estrutura chamada Polícia Territorial que engloba 136 delegacias no Estado.  Acontece que essas delegacias estão com apenas um terço do efetivo, ou seja, nós temos dois terços fora da principal atividade da Polícia Civil. Outro desarranjo que deve ser consertado durante a intervenção é que as áreas de inteligência não cooperam, e não só entre PM e Civil, mas também entre ambas e a Polícia Federal”.

      Na esteira da criação do Ministério da Segurança Pública, encabeçado pelo ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, o presidente Michel Temer disse, no dia 1º de março, que liberaria 42 bilhões de dólares para serem investidos em segurança pública por estados e municípios, 33,6 bilhões dos quais via BNDES. Ocorre que o Distrito Federal e 15 estados – Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins – não podem receber tais recursos, pois se encontram endividados e não se enquadram nas regras do Tesouro Nacional exigidas para acesso aos valores.

      Após 35 dias de iniciada a intervenção no Rio de Janeiro, em 21 de março, Temer anunciou a liberação de 1 bilhão de reais para a área de segurança no estado, total bem aquém dos 3 bilhões apontados como necessários pelo próprio interventor, general Walter Braga Netto. Outro fato demonstra a forma sui generis pela qual o Governo Federal pretende combater a criminalidade. Entre 2016 e 2017, o investimento do governo no Sisfron (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras) caiu de 285,7 milhões de reais para 132,4 milhões, ou seja, uma redução de 54%, conforme o Siga Brasil, sistema de informações sobre o orçamento público federal.

Jovens nas comunidades continuam morrendo

 

São Paulo e o PCC

O PCC (Primeiro Comando da Capital) montou franquias em vários lugares, franquia de exploração de lotações, franquia de entrega de botijões de gás, franquia de desvio de cabos de televisão, franquia de tráfico de drogas, franquia do delivery da droga. O PCC já ultrapassou as fronteiras paulistas, está no Mato Grosso, está no Paraguai. Já fiz matérias sobre a conexão do PCC com o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro. O PCC hoje realiza prioritariamente tráfico de drogas e mantém uma conexão muito íntima com o contrabando de armas. É só prestar atenção ao que acontece: bandidos com AK47, metralhadora .50, fuzil Colt AR15. Esse é o outro lado das franquias: terceirização das armas de fogo. Um grupo planeja um grande assalto, e o PCC aluga as armas, com seguro e prazo de devolução.

      O trecho acima é transcrito de uma entrevista concedida em 2013 à Revista da CAASP pelo jornalista Percival de Souza, de biografia invejável quando assunto é segurança pública. Entre várias obras sobre o tema, escritas em paralelo a uma carreira na imprensa notável pelo combate a Esquadrão da Morte nos anos 70, Percival escreveu em 2007 o livro “O Sindicato do Crime”, sobre a história do PCC. Nada o desmente, mas algumas nuances atuais devem ser observadas.

      Hoje, Marcos Williams Herbas Camacho, o Marcola, líder maior do PCC, está encarcerado em um presídio de segurança máxima. Outros comandantes do grupo também estão presos. São Paulo, berço da facção criminosa, orgulha-se de viver uma queda no número de homicídios. No primeiro mês de 2018, os casos de homicídio doloso no Estado recuaram 6,76%, passando os registros de 281 para 262. O número de vítimas baixou 10,65%, de 310 para 277, em comparação com janeiro de 2017. Trata-se dos dois menores indicadores para esse tipo de crime desde o início da série histórica, em 2001.

      O coronel José Vicente da Silva reserva efusivos elogios à segurança pública paulista. “A cidade de São Paulo, por exemplo, é dividida em 92 distritos policiais, e cada distrito tem um contingente da PM comandado por um capitão e uns 100 policiais. A polícia de São Paulo tem, coisa que a do Rio não tem, um mapa digital que possibilita a qualquer momento saber dos crimes que acontecem em determinados área, hora e local. Isso permite direcionar o policiamento”, descreve Silva, hoje pesquisador do Instituto Fernand Braudel, entidade associada à FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado).

      “Um dos bairros mais violentos que tínhamos em São Paulo era o Capão Redondo, na Zona Sul da capital. Em 1998, pela estatística da época, ali ocorriam 75 mortes por cada 100 mil habitantes. Ano passado, esse número caiu para 7,7 mortes por 100 mil habitantes. Trata-se de uma comunidade com perfil semelhante à da Rocinha, no Rio de Janeiro”, relata Silva.

      Sem deixar de reconhecer méritos do Governo do Estado na queda dos homicídios em São Paulo, Guaracy Mingardi, ex-investigador de Polícia e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, diz que a baixa progressiva desse tipo de crime deve-se a vários fatores, entre os quais medidas de nível municipal decorrentes do Fórum de Prefeitos sobre Segurança, em 2005, bem como a campanha do desarmamento deflagrada em 2001, movimentos inibidores da violência que em outros estados, ao que tudo indica, não surtiram efeito.

      Mas especialistas apontam mais um fator como responsável pela diminuição dos homicídios dolosos em São Paulo: a hegemonia criminosa do PCC, mesmo com seus principais chefes encarcerados. Sem rivais, sem mortes.

      “Não há nenhuma maravilha em São Paulo. O tráfico continua. A pedra de crack custa hoje menos do que custava em 2000, e o mercado não diminuiu – a pedra hoje custa entre quatro, cinco reais; em 2000 custava 10 reais. A questão é que o mercado aumentou, tem mais gente usando, e assim mesmo o preço caiu. Isso significa que se está entregando mais droga”, avalia Mingardi, que foi secretário municipal de Segurança em Guarulhos.

      Para Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a queda dos homicídios dolosos em São Paulo é real e bem-vinda. Porém, ele também enxerga na hegemonia do PCC um dos fatores responsáveis: “O negócio do PCC é dinheiro e, sendo assim, onde há monopólio não há disputa. O PCC conseguiu o monopólio da droga em São Paulo e, com isso, não há tanta disputa por território. Assim, as mortes foram caindo”.

      Bem mais duro com o governo paulista é o presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Estado de São Paulo, João Batista Rebouças da Silva Neto “O governo, aproveitando o momento político e a situação caótica da segurança no país, vem alardeando que, em São Paulo, houve um decréscimo no número de homicídios. Na verdade, isso não acontece. São Paulo continua sendo uma cidade dominada pelo crime”, afirma.

     Rebouças cita a redução no número de policiais como argumento para denunciar a falta de coerência por parte do governo: “Em 2008, quando fizemos a greve (a maior da histórica da categoria), éramos 32 mil. Hoje estamos perto de 19 mil. Hoje, o policial, o operacional, o investigador, tem desvio de função. Ele faz tudo, menos investigar”.

      São 130 mil inquéritos policiais e só 2% esclarecidos, segundo ele. “É muito fácil você dizer que diminuiu o número de homicídios. Só que, no registro, em vez de homicídio, aparece ‘morte a esclarecer’ ou ‘encontro de cadáveres’. Ou morreu em confronto com a polícia. Tudo isso permite dizer que os homicídios diminuíram. Na verdade, não diminuíram. O que diminuiu foi o quadro de policiais”, acusa Rebouças. “O governo não fala a verdade, não gosta de ouvir isso. Diz que é uma crítica política, mas nós não somos filiados a nenhum partido nem a nenhuma central sindical. Nós queremos que a população tenha a polícia que o governo fala que tem”, desabafa.

          Para Rebouças, o governo paulista desmantelou a Polícia Civil. “É uma polícia velha, cansada, procurando hoje outros meios para sobreviver. Depois do Estado investir no policial por 10 anos, ele vai trabalhar na iniciativa privada, onde tem seguro, cesta básica e outros benefícios, e sai da polícia”, diz.

      Há alguns meses, o Sindicato dos Policiais Civis denunciou o titular do 4º Distrito de Polícia de São Paulo por pressionar as equipes a cumprirem metas de flagrante. “A polícia não tem que forjar flagrante, tem que trabalhar com inteligência. Fazer flagrante é fácil: você vai na Cracolândia e pega dois ou três minitraficantes que estão fumando crack ou maconha e faz o flagrante. Mas isso não resolve.”

      A crítica à política de estímulo aos flagrantes é corroborada por Renato Sérgio de Lima. “O sistema como um todo trabalha muito. A PM de São Paulo atende por ano a cerca de 40 milhões de ocorrências, das quais 20% são de natureza criminal, portanto entre 8 milhões e 10 milhões de ocorrência criminais todos os anos. O sistema de fato trabalha muito, mas de forma anacrônica. Não se trabalha com uma filosofia orientada a resolver problemas. No caso do furto de celular, qual é a cadeia do produto? Qual é a cadeia do roubo de carro, desde o desmanche até o chefe da quadrilha? Ou seja, investimos pouco em investigação e priorizamos o flagrante. Ao priorizar o flagrante, reproduzimos desigualdades, porque quem acaba cometendo o crime na rua é sempre o pobre, jovem e negro, enquanto o crime que exige investigação fica impune”, raciocina o presidente do FBSP.

      A Revista da CAASP tentou insistentemente entrevistar o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, mas não obteve retorno.

Alckmin e Marcola, chefe do PCC: um deles é responsável pela queda da taxa de homicídios em São Paulo

Presídio: “escritório do Marcola”?

      É comum especular-se na mídia que a ordem para determinado crime saiu de dentro de um presídio. De pronto leitores e telespectadores imaginam Marcola, com seu celular, na penumbra do submundo do cárcere, passando sinistramente orientações aos seus subordinados do PCC ativos nas favelas e nas periferias. A imagem que se projeta na mente do público pode não ser totalmente irreal, mas suposições cinematográficas deveriam ser deixadas de lado, ao menos para o coronel José Vicente da Silva.

      “Nós observamos que não há um comando direto tão estruturado quanto se imagina. Acho que se fantasia muito essa questão. Só com um celular e bilhetinhos não se comanda um grupo criminoso”, adverte Silva. “Os grupos que estão fora têm sua liderança, sua estrutura, sua administração. Mexem com dinheiro, com a distribuição dos produtos do crime, mas o contato com os chefes da facção são esporádicos. Eles não têm esse comando tão forte assim”, acrescenta. E mais uma vez enaltece o modelo paulista: “No caso específico de São Paulo, o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), em vigor nos presídios de segurança máxima, é um regime extremamente rigoroso, e não há como uma liderança lá dentro passar um bilhetinho, porque não há visita íntima, o contato é feito mediante vidro blindado. Há um isolamento extremamente intimidador para o preso”.

      Já para Renato Sérgio de Lima, o presídio “acaba sendo o escritório do Marcola e de outras lideranças”, pois, na prática, o isolamento total é impossível. “Há a questão dos celulares, há a questão do fluxo de informação e há, principalmente, a questão da superlotação prisional, que fortalece o PCC. Controlando a prisão, ele controla o crime fora dela, porque na prisão ele coopta autores de pequenos delitos, que saem de lá em pouco tempo”, argumenta o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

      Fato é que, segundo o FBSP, existem cerca de 30 organizações criminosas em atuação no Brasil, todas atrás de dinheiro, exclusivamente de dinheiro. “Elas não formam um poder paralelo”, assinala Lima. “Elas são, basicamente, um poder que tem profunda conexão com o Estado. A cooptação de agentes públicos faz parte da própria lógica do crime organizado, e nós não podemos olhar apenas para a polícia, mas também para o Judiciário e o Ministério Público. O crime organizado não existiria no Brasil se não existisse sua interface com o Estado”, acusa.

      Drogas e armas – Se a descriminalização do uso de drogas, especialmente a maconha, não encontra consenso quanto ao seu suposto potencial inibidor do crime, ao menos é consensual que a questão deve ser debatida em profundidade, livre de dogmas, levando-se em conta a realidade brasileira e fatores de saúde envolvidos. De outra parte, quanto à facilitação do uso de armas de fogo pela população – pelas “pessoas de bem”, segundo seus defensores –, nem dois indivíduos com visões quase sempre antagônicas como Renato Sérgio de Lima e José Vicente da Silva discordam, se nos restringirmos aos círculos especializados, excluindo a Bancada da Bala do Congresso Nacional e seus eleitores.

      “Cidadãos com bons antecedentes, dependendo da oportunidade, do estresse, podem tanto matar uma pessoa como se matar. Eu sou psicólogo também, e conheço bem esse tipo de problema. Mas a questão central nem é essa. É que todas as pesquisas desde sempre mostram que a entrada de armas sempre – repito: sempre! – gera mais homicídios”, alerta o coronel. E vai além: “Os que advogam a ideia de facilitar às pessoas adquirir armas como forma de defesa não têm uma só mostra, uma só realidade, uma só pesquisa mostrando que mais armas signifiquem menos crimes”.

      O presidente do FBSP também é contra armar a população, mas aborda a questão sob outra perspectiva. “Trata-se de uma falsa questão. O Brasil não é um lugar onde a posse de arma é proibida, como dizem os discursos daqueles que querem revogar o Estatuto do Desarmamento, discursos em cima do medo da população”, afirma Renato Sérgio de Lima. E explica: “Hoje, temos 380 mil armas. Desde 2004, o Estatuto diz que é preciso ter um cadastro unificado entre o Exército e a Polícia Federal, mas não há como fazer as duas instituições conversarem. Então, o sistema de colecionadores e das polícias controlado pelo Exército é um, e o sistema da Polícia Federal é outro. Eles não conversam”.

      Para finalizar, Lima lembra que “se bandido bom fosse bandido morto, o problema da criminalidade o Brasil estaria resolvido, pois aqui mataram-se mais de 1 milhão de pessoas nos últimos 30 anos”.

A criminalização da pobreza