Por que a Justiça acertou ao liberar os suspeitos do incêndio em Santa Maria

Atualizado em 1 de junho de 2013 às 20:08

A prisão dos acusados como satisfação à justa dor dos familiares seria um abuso intolerável.

 

A boate Kiss
A boate Kiss

 

No dia 29 de maio, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou favoravelmente pedido de habeas corpus dos acusados do incêndio da Boate Kiss, ocorrido no dia 27 de janeiro, que ocasionou a morte de 242 pessoas. Com a decisão, foram colocados em liberdade os sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os membros da banda Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

A decisão foi absolutamente correta, apesar do justo inconformismo dos familiares das vítimas e, em geral, da maioria da população.

A Constituição, felizmente, não permite que se pense na prisão preventiva (antes da condenação definitiva) como justiça, ou seja, como pena, pois deve ser presumida a inocência do suspeito. Em razão de nossa precária cultura democrática, o Judiciário, no Brasil, é criticado mais por suas virtudes do que por seus defeitos. Sobretudo quando a decisão desagrada à opinião pública.

A comoção causada por esse dantesco episódio é singular, o que gera uma vontade de que a justiça seja feita imediatamente. Quando fatos como esse acontecem, o prejulgamento é inevitável e, para a população, a ação penal parece uma ridícula formalidade que concluirá o que todos já sabem – que os réus são culpados. Mas, em um caso com essa complexidade, há muita coisa que precisa ser esclarecida e devidamente debatida, para que se saiba se há e qual seria a responsabilidade de cada um dos suspeitos.

A Constituição consagra como direito fundamental a presunção da inocência, de tal maneira que uma pessoa só pode ser considerada culpada depois de uma ação penal, na qual o acusado pode produzir provas com o fim de descaracterizar a acusação. Essa regra não existe à toa. A história do Direito Penal é repleta dos erros judiciários. Muitos são os casos em que o réu é absolvido, contrariando a impressão inicial de culpa. A percepção inicial se vê desmentida pelo confronto das provas e por sua análise serena.

A prisão de uma pessoa, antes da condenação irrecorrível, só pode acontecer em situações excepcionais, ou seja, se houver necessidade. Daí o nome “prisão preventiva”. Não era o caso de Santa Maria. Deve ser decretada a prisão preventiva se houver indícios de que o suspeito vai cometer mais crimes, o que ocorre em casos como roubo ou de assassinatos de aluguel, por exemplo. É passível também se houver indícios de que o suspeito vá fugir (não tem sentido presumir que todo acusado vá escapar).

Não existe qualquer suspeita de os donos da boate ou os músicos voltariam a delinquir; também não há sinais de que estariam atrapalhando a produção de provas ou que estivessem preparando fuga. Por isso, não poderiam continuar detidos. Pensar na prisão dos acusados como forma de dar uma satisfação à justa dor dos familiares da vítima seria uma forma de antecipação da pena. Ou existe necessidade da prisão preventiva ou ela é abusiva.

É compreensível o inconformismo dos familiares das vítimas, mas a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi correta. Prender ilegalmente os quatro suspeitos seria apenas acrescentar uma violência de estado à pavorosa tragédia de Santa Maria.

Mauro Hoffman, sócio da boate, se entrega à polícia
Mauro Hoffman, sócio da boate, se entrega à polícia
José Nabuco Filho é mestre em Direito Penal pela Unimep, professor de Direito Penal da Universidade São Judas Tadeu e quarto-zagueiro clássico. Seu email: j.nabucofilho@gmail.com