Por que a palavra da vítima vale muito nos casos patrimoniais, mas pouco nos de assédio ou estupro? Por Luiza Eluf

Atualizado em 28 de dezembro de 2020 às 8:52
Fernando Cury e Isa Penna. Foto: Reprodução/Alesp

A deputada estadual Isa Penna (PSOL/SP), durante sessão na Assembléia Legislativa de São Paulo, foi atacada pelo colega deputado Fernando Cury (Cidadania) que passou as mãos pelo corpo da colega, apalpando seus seios. Tal violência sexual foi filmada pelas câmeras do plenário e, portanto, tornou-se inquestionável a ocorrência do crime. Indignada, a deputada reagiu proferindo palavras contundentes de repúdio ao ocorrido e pedindo as providências cabíveis por parte de seus pares, principalmente, à presidência da Assembléia Legislativa.

O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 215-A, diz: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia  ou a de terceiro.”

“Pena: reclusão de 1 a 5 anos, se o ato não constitui crime mais grave”

Trata-se da importunação sexual, acrescida ao Código Penal pela Lei n.13.718/2018.

A imprensa divulgou que a deputada Isa Penna também registrou Boletim de Ocorrência contra o colega e representou junto ao Conselho de Ética da Assembléia pedindo que Cury perca o mandato.

Depois da publicidade sobre o ocorrido com Isa, ao menos outras quatro deputadas vieram a público, pelos meios de comunicação, denunciar importunações sexuais por parte de colegas. Foram elas Tabata Amaral (PDT/SP), Joice Hasselmann (PSL/SP), Áurea Carolina (PSOL/MG) e Clarissa Garotinho (PROS/RJ). É de se perguntar: o que ocorre no Brasil para que o desrespeito à mulher seja tão grande e tão comum, apesar de todas as leis pátrias que asseguram a igualdade de gênero, impondo sanções cíveis e criminais a quem desrespeitar seus ditames? Que cultura é essa que incentiva o estupro e culpa a vítima pelas agressões que sofre?

Temos uma Constituição Federal que proíbe todas as formas de discriminação e que equipara explicitamente os direitos de homens e mulheres, assegurando o respeito e a convivência civilizada no país. Algo acontece, porém, que as normas não são levadas a sério quando se trata de violência contra a mulher. A cultura patriarcal ainda tenta se sobrepor às normas legais, sacrificando a mulher não apenas em sua dignidade sexual mas também em seu direito à própria vida. Não pode haver tolerância para com eventos dessa natureza; os abusadores precisam ser severamente punidos.

Por outro lado, cabe às vítimas munirem-se de coragem e fazerem as denúncias relacionadas às agressões que sofreram. As leis estão a favor das ofendidas, não é necessário ter medo de recorrer às Delegacias Comuns ou Especializadas (temos muitas Delegacias da Mulher pelo país), sendo que além da Polícia, também o Ministério Público atende mulheres vítimas de violência sexual, física, psicológica, moral e patrimonial. O desrespeito aos direitos da mulher tem que acabar hoje, agora, nesse minuto. Não deve haver qualquer tolerância nessa área, e as vítimas não podem ter medo de se posicionar. Nesse particular, a deputada Isa Penna agiu muito bem e faz jus ao nosso aplauso.

A mulher que alega ter sido vítima de agressão sexual merece crédito. A probabilidade de ela estar mentindo é a mesma da vítima de roubo, por exemplo. Nos crimes patrimoniais, a palavra da vítima se reveste de grande credibilidade. É ela que aponta o ladrão, o estelionatário, o seqüestrador, etc.. Os casos de crimes sexuais devem ser encarados da mesma maneira.

Sabemos que a sexualidade, no Brasil, ainda não é entendida, socialmente, como manifestação natural e espontânea do ser humano, mas sim como instrumento de poder por meio do qual o homem procura exercer controle sobre o corpo da mulher. Desta forma, a sexualidade é a arma usada para garantir a desigualdade das categorias sociais. O estupro e a morte são as manifestações extremas dessa desigualdade, que não é biologicamente induzida, mas socialmente construída. A educação sexista fragiliza a mulher e a torna vulnerável às agressões, mesmo quando ela se encontra ocupando altos cargos na hierarquia social e política. Os ataques sexuais praticados cotidianamente no país são, muitas vezes, compreendidos e perdoados em um meio social que autoriza o desrespeito a uma parcela significativa de sua população, incentivando manifestações de masculinidade fundadas na dominação.

Existem muitos grupos feministas atuando entre nós e a união de todas só pode levar ao sucesso. É imprescindível transmitir às mulheres que elas são fortes, basta que estejam juntas, solidárias e conscientes. Por outro lado, é igualmente importante educar os homens para a decência, o respeito, a tolerância e a dignidade. É extremamente relevante mostrar à população masculina que as mulheres não são objetos sexuais, disponíveis a qualquer incauto descontrolado que esteja em “estado de necessidade”. O episódio filmado na Assembléia Legislativa é vergonhoso para seu autor, que merece arcar com as conseqüências previstas em lei, a fim de que suas vítimas (a atual e eventualmente outras que ele tenha atacado da mesma forma) possam sentir que seus direitos foram, ainda que posteriormente, respeitados.

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Luiza Nagib Eluf é advogada. E-mail: [email protected]

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Publicado originalmente no Estadão.