
Por Washington Araújo
Soberania é palavra que carrega séculos de história, lutas e reflexões, mas que, em 2025, parece mais frágil do que nunca. No dia 7 de julho de 2025, uma carta de Donald Trump, presidente dos EUA, caiu como um petardo no Brasil.
O texto, enviado ao presidente Lula (PT) por intermédio de redes sociais, não apenas ameaça impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros exportados aos EUA – nosso segundo maior parceiro comercial, com um fluxo de US$ 88,2 bilhões em 2024, segundo o Ministério da Economia – mas vai além: exige, em seu primeiro parágrafo, a suspensão imediata de processos judiciais contra Jair Bolsonaro. “Este julgamento não deveria estar acontecendo. É uma caça às bruxas que deve acabar IMEDIATAMENTE!”, escreveu.
É óbvio que brilha como luz neon o advérbio “imediatamente” — a significar “sem demora; no mesmo instante; sem intervalo de tempo”. As palavras soam menos como uma correspondência entre chefes de Estado e mais como um édito imperial, desproporcional e inaceitável entre duas das maiores democracias do mundo ocidental.
Como professor de sociologia da comunicação, não posso deixar de enxergar o que está em jogo: um ataque direto à nossa capacidade de decidir nosso próprio destino. Em sentido estrito, a carta tem peso político considerável, algo inédito nas relações entre as duas nações e que traz consigo dois séculos de história pacífica e produtiva.
O que é soberania?
Antes de mergulhar na carta de Trump, vale entender o que está em xeque. No direito internacional, soberania é a pedra de toque do Estado-nação. Desde a Paz de Westfália, em 1648, ela significa a autoridade suprema de um país em seu território, sem ingerências externas.
A Carta da ONU, no Artigo 2, § 1 consagra a igualdade soberana entre Estados, e no § 7 proíbe intervenções em assuntos internos. Mas a globalização complicou as coisas. Tratados internacionais, como os de direitos humanos, e organismos como a OMC impõem limites à soberania absoluta. Hoje, ser soberano é navegar entre autonomia interna e pressões globais – que pode em um parque de diversões alternar roda gigante com montanha russa em questão de horas.
Na filosofia, a soberania ganha contornos mais humanos.
– Jean Bodin, no século XVI, via o soberano como um poder absoluto, inalienável, quase divino.
– Thomas Hobbes, em Leviatã (1651), defendia que cedemos direitos a um soberano para escapar do caos.
– Rousseau, em 1762, virou o jogo: a soberania pertence ao povo, expressa pela vontade geral.
– Já Hannah Arendt, no século XX, alertava que soberania absoluta pode virar tirania, defendendo um poder compartilhado, plural.
Essas ideias mostram que soberania não é só sobre fronteiras, mas sobre quem manda – e como.
Na ciência política, soberania é o que faz um Estado ser Estado: autoridade interna para criar leis e autonomia externa para conduzir relações internacionais. Mas o mundo de 2025 não parece ter essa ideia pacificada. Países com as maiores economias e os maiores orçamentos militares usam sanções, pressões econômicas e até intervenções militares para moldar nações menores aos seus interesses.
É aqui que a carta de Trump entra como um elefante em uma loja de cristais.

Uma afronta explícita
No dia 7 de julho de 2025, Donald Trump enviou uma carta que não deixa margem para interpretações suaves. Voltando ao primeiro parágrafo, por que não pode ser esquecido, se exige do Brasil a suspensão sem demora dos processos judiciais contra Jair Bolsonaro, investigado por crimes que vão de incitação à violência a tentativas de subverter as eleições de 2022, conforme relatórios do Supremo Tribunal Federal (STF). Trump não apresenta justificativas legais, apenas insinua que a continuidade dos processos pode “prejudicar as relações bilaterais”.
É uma chantagem ostensiva, de caso pensado: ou o Brasil cede, ou enfrenta retaliações.
Além disso, a carta ameaça impor tarifas de 50% sobre exportações brasileiras, que representam 13% do nosso PIB, segundo o IBGE. Trechos como “o Brasil deve alinhar suas políticas comerciais aos interesses americanos” e “a cooperação com os BRICS, especialmente o Irã, é um desafio à liderança global dos EUA” mostram uma tentativa de subordinar nossa política externa.
O americano ainda condiciona a “prosperidade da parceria” a mudanças nas prioridades econômicas e políticas do Brasil. Isso não é diplomacia; é coerção. É intimidação por meio de dependência financeira.
O impacto econômico seria muito prejudicial ao país. Em 2024, o Brasil exportou US$ 31,2 bilhões em bens para os EUA, segundo a Secretaria de Comércio Exterior. Tarifas de 50% poderiam cortar esse valor pela metade, afetando setores como agronegócio, mineração e manufatura.
Mais grave ainda: a exigência sobre Bolsonaro ataca o coração da nossa soberania que é o direito de julgar nossos cidadãos mediante a aplicação de nosso arcabouço jurídico, de nossas leis.
O que o passado ensina sobre violações de soberania
A história está cheia de exemplos de como ingerências externas podem destruir nações.
Em 2003, os EUA invadiram o Iraque sob o pretexto de eliminar armas de destruição em massa – que nunca foram encontradas. O resultado? Mais de 200 mil mortes, segundo estimativas da The Lancet, e o surgimento do ISIS.
Em 2011, a intervenção da OTAN na Líbia, justificada pela “responsabilidade de proteger”, derrubou Gaddafi e deixou o país em guerra civil, com 20 mil mortos até 2020, conforme a ONU.
Em 2013, Edward Snowden revelou que a NSA (Agencia de Segurança Nacional dos EUA) espionava até aliados, incluindo a então presidente Dilma Rousseff, minando a confiança diplomática.
Mais recente, em 21 de junho de 2025, os EUA atacaram instalações nucleares iranianas, violando sua soberania. O Brasil, como parte dos BRICS, condenou a ação, que desestabilizou o Oriente Médio e elevou os preços do petróleo em 15%, segundo a Bloomberg. Esses casos mostram que intervenções externas, sejam militares, econômicas ou judiciais, geram caos, crises humanitárias e instabilidade global.
O Brasil aos olhos do mundo
A carta de Trump não é um fato isolado. É parte de um padrão onde potências globais tentam moldar nações menores. O Brasil, com sua economia de US$ 2,1 trilhões (FMI, 2024) e sua influência nos BRICS, é um alvo estratégico. Nossa parceria com o Irã e a China, que juntos representam 25% do nosso comércio exterior, incomoda os EUA. A exigência de suspender processos contra Bolsonaro é um teste: até onde o Brasil está disposto a ceder?
Como jornalista, vejo o Brasil em uma encruzilhada. Defender nossa soberania exige mais do que palavras. É preciso diversificar parcerias comerciais – em 2024, a China já superou os EUA como nosso maior parceiro, com US$ 105 bilhões em trocas. É preciso fortalecer instituições, como o STF, para garantir que ninguém, nem mesmo um ex-presidente, esteja acima da lei. E é preciso coragem para dizer “não” a pressões externas, mesmo que isso custe caro.
Nossa soberania não é negociável. Cabe a nós, como nação, proteger o que é nosso – do Judiciário às nossas florestas, das nossas leis ao nosso direito de escolher nosso caminho. O Brasil, se quiser, pode responder com a força de quem sabe o que é ser soberano.
Em tempo: Se qualquer outra nação tivesse enviado carta naqueles termos a qualquer país, com linguagem tão inapropriada, fosse a China, Angola, Rússia ou Luxemburgo, não hesitaria em escrever essas mesmas reflexões. Mudaria apenas o nome do país e os dados econômicos atinentes às suas economias. Como pensador livre não tomo partido, apresento ideias, defendo causas.