Por que Abril e Globo são clientes “premium” da Sabesp e têm gordos descontos?

Atualizado em 11 de março de 2015 às 12:48
O edifício que era da Abril na Marginal Pinheiros
O edifício que era da Abril na Marginal Pinheiros

Esta é mais uma reportagem da série do DCM dedicada a investigar o papel da Sabesp e de seu controlador, o governo do estado de São Paulo, na crise da falta de água. As demais matérias estão aqui. Fique ligado.

 

O jornal El Pais divulgou nesta terça-feira (10) uma lista de 537 clientes que recebem até 75% de desconto no uso de sua água fornecida pela Sabesp. São grandes empresas, como o McDonald’s, indústrias e até a companhia de bebidas Bacardi. Entre elas, estão a Abril, a Globo, a Record e o portal UOL.

O Estadão estava originalmente na lista, publicada às 10h da manhã no El Pais. Ela foi atualizada com mais nomes às 17hrs do mesmo dia e o jornal sumiu. O texto divulgado pela Agência Estado não fala, obviamente, da primeira listagem.

Por qual motivo essas companhias ganham expressivos descontos, enquanto o cidadão comum paga cada vez mais caro e pode receber multas de até 250 reais por lavar a calçada?

Quarenta e dois clientes iniciaram seus contratos em 2014, quando a escassez no sistema Cantareira já havia acionado as cotas de volume morto. Ou seja, a Sabesp deveria ter evitado novos acordos com estes descontos, pois eles gastam 1,8 bilhão de litros e foram responsáveis pela alta de 5,4% no consumo anual.

As mais de 500 companhias recebem gordos descontos porque a Sabesp negocia seus contratos “no atacado”. O fornecimento leva em conta que um shopping com o porte de um Eldorado consome pelo menos 20 milhões de metros cúbicos de água para atender um público 1,8 milhão de pessoas por mês, um valor muito superior aos 15 mil litros consumidos por uma família de quatro pessoas no mesmo período de tempo.

O cliente pessoa física é tratado como se estivesse “no varejo”, com uma tarifa proporcionalmente maior.

Os critérios para escolha dos clientes “premium” são técnicos, de acordo com a Sabesp. Por que praticar estes preços? Para manter a alta lucratividade em cima da venda de grandes volumes. Se grandes grupos pagassem os mesmos R$ 13,97 do consumo doméstico, teriam que racionar água, diminuindo o consumo e balançando o faturamento da empresa que é fornecedora de recursos hídricos do estado de São Paulo.

Com isso, provavelmente a população teria níveis hídricos mais confortáveis para enfrentar a estiagem que foi forte em 2014 e que deve voltar neste ano.

O ex-presidente por trás dos contratos

Gesner Oliveira tem 58 anos, é economista pela FEA-USP e doutor pela Universidade da Califórnia. Ele tem história no setor público como secretário adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda de 1993 a 1995, como secretário interino de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda, também em 1995 e como presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) entre 1996 e 2000. Foi presidente da Sabesp entre 2007 e 2010, quando formalizou os contratos de demanda firme.

Oliveira chegou a afirmar, em fevereiro, que a Sabesp já deveria ter suspendido o privilégios dos “premium”.

O DCM obteve acesso exclusivo a uma apresentação feita por Oliveira à Câmara dos Vereadores para a CPI da Sabesp. No documento apresentado no dia 5 de novembro de 2014, chamado “Futuro da água: uma agenda para a sociedade civil e diferentes esferas de governo”, ele pede que a sociedade e o governo mudem radicalmente de comportamento em relação à água no mesmo documento, sem mencionar as empresas. Atualmente, atua como consultor privado em negócios que incluem o setor de gestão hídrica.

Conflito de interesses

Há um conflito claro de interesses na maneira como a crise é coberta pelos veículos dos dois grupos de mídia incluídos na lista “premium”. Não se trata apenas de alinhamento “ideológico”.

A Abril, através de suas revistas, não atribui qualquer responsabilidade ao governador Geraldo Alckmin, enquanto a Globo mantém seus jornalistas focados na questão da seca do sudeste, sem fazer questionamentos sobre a atuação da empresa fornecedora de água.

O site da Veja não noticiou as demissões recentes dentro da Sabesp, o que era de se esperar, mas a Exame dá destaque à ameaça de greve dos sindicalistas e à baixa das ações. Eventualmente, publicações segmentadas da Abril relatam contaminação durante a crise hídrica.

O UOL foi até a represa Atibainha, em Nazaré Paulista, fotografar o carro que se tornou símbolo da seca no Cantareira, mas dá manchetes animadas quando ocorrem chuvas, sendo que o nível das represas não superou nem a segunda cota do volume morto. Já a Record faz uma cobertura parecida com a da TV Globo, atenta à seca mas pouco crítica.

Fantástico conseguiu ir a Itu contar o drama da cidade e em nenhum momento citou o nome de Alckmin ou de alguma outra autoridade estadual. Não apareceu em cena sequer a famosa frase “entramos em contato com a assessoria do governador Geraldo Alckmin, mas ele não quis responder”.

Falta água, mas uma mão lava a outra.