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Por que Anderson Silva não é um ídolo como Muhammad Ali ou Ayrton Senna

Para ser um legítimo heroi, o campeão tem forçosamente que provocar incômodo, de alguma forma.

O Brasil é um caso curioso de país que ridiculariza seus heróis. Com exceção de Ayrton Senna, que morreu cedo, no auge, com uma biografia praticamente imaculada, nós adoramos bater em ídolos. Quem são os nossos exemplos, os caras para quem olhamos, como dizia George Harrison sobre John Lennon, de baixo para cima, os caras que podemos encarar como vencedores?

Assisti a um belíssimo documentário sobre Muhammad Ali na NetFlix chamado Facing Ali (http://www.facingalimovie.com/), de 2009, em que os maiores adversários do maior boxeador de todos os tempo contam como foi enfrenta-lo. George Foreman fala do combate no Zaire, quando Ali, o desafiante, já com 34 anos, o nocauteou no oitavo assalto, um Foreman jovem e indestrutível, que havia humilhado todos os seus oponentes. Ali ficou nas cordas o tempo todo, dizendo no ouvido dele: “Isso é tudo o que você tem, George?”. “Quando eu estava caindo, Ali teve a chance de dar um último golpe, o golpe de misericórdia, para acabar de vez comigo. Ele apenas me olhou. Isso dá a medida desse homem, para mim”. Joe Frazier, que foi espezinhado por Ali, xingado de gorila e Uncle Tom (o negro amigo dos brancos), relata a batalha em Manila, a luta mais selvagem de todas, em que um queria o aniquilamento completo do outro. Larry Holmes, ex-sparring dele, lembra a última luta do campeão, quando ele já exibia sinais de Parkinson, em 1978, num espetáculo patético em que o narrador da TV pedia, inutilmente, que ele parasse de bater naquele “velho”. Ali perdeu.

Ali foi um homem corajoso em suas posições políticas. Nos anos 60, a luta pelos direitos civis dos negros estava pegando fogo. Ali virou muçulmano, abandonou o nome de Cassius Clay (“nome de escravo”) e teve o título cassado por não se alistar no Vietnã (“eu não tenho nada contra os vietcongues”, disse em sua sabedoria intuitiva, sem querer ecoando o que Tolstoi escreveu sobre franceses e russos no monumental Guerra e Paz).

Anderson Silva é o nosso novo herói. De origem humilde, soube captar um sentimento nacional quando um oponente — Chael Sonnen —  desfiou um rosário de piadas bestas contra o Brasil. Anderson galvanizou a raiva contra Sonnen. Anderson é um sujeito admirável. A Globo já o transformou em sua nova atração (daqui a pouco deve ganhar um programa de entrevistas). Está rico e deve ficar mais. É humilde, simpático e – confiável. Eis, talvez, seu maior empecilho. Não que esteja domesticado, mas você não vai ouvir dele nada parecido com frases desafiadoras ou que incomodem os poderosos. Anderson foi aceito e goza sua glória.

O Brasil não é os EUA, para o bem e para o mal. Nós somos o país do jeitinho e da conciliação. OK. Mas um herói de verdade, como Muhammad Ali ou Senna, possui um traço distintivo, algo que faz dele, naquela expressão tão feliz, “larger then life”: ele incomoda. Ele não esquece. Anderson tem tudo a seu favor para se tornar um grande campeão da mesma estatura. Provavelmente, ele só terá de passar por uma coisa para crescer e transcender: perder. E então voltar a ganhar para sempre.

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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Kiko Nogueira

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