
As mudanças na aplicação do foro privilegiado explicam por que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) está sendo julgado diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF), por liderar uma organização que tramou um golpe de Estado para mantê-lo no poder após a derrota nas eleições de 2022. O presidente Lula (PT), por outro lado, foi julgado em primeira instância quando enfrentou acusações na Lava Jato.
À época da Lava Jato, o foro privilegiado deixava de valer quando a autoridade saía do cargo. Henrique Attuch, advogado criminalista do escritório Wilton Gomes Advogados, explicou ao Uol que foi nesse cenário que Lula enfrentou a primeira instância nas acusações do tríplex do Guarujá, enquanto já era ex-presidente.
O entendimento mudou recentemente: desde março, o foro privilegiado continua valendo quando os crimes foram cometidos durante o mandato e em razão da função pública.
Essa foi a segunda alteração de posicionamento da Corte sobre o tema. Em 2018, o STF restringiu o foro privilegiado para reduzir o volume de ações criminais após o Mensalão. Desde então, inquéritos e processos criminais envolvendo deputados e senadores só precisavam começar e terminar no STF se tivessem relação direta com o exercício do mandato. Agora, a Corte decidiu que crimes funcionais devem permanecer sob sua competência mesmo após a saída do cargo.
“O STF estabeleceu uma exceção: se a investigação ou a ação penal já foi iniciada no Tribunal, a competência do STF se perpetua para evitar que um réu renuncie ao cargo apenas para manipular a jurisdição e atrasar o processo”, afirmou Marcelo Válio, mestre em direito pela PUC/SP e doutor em filosofia do direito pela UBA (Argentina).

O caso de Bolsonaro se enquadra nessa regra. As investigações tratam de atos ligados diretamente ao exercício da Presidência, o que mantém a competência no STF.
“No caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, os supostos crimes que estão sendo apurados foram, em tese, cometidos enquanto Presidente da República e, ainda, sendo dois deles contra o Estado Democrático de Direito”, explicou a advogada criminalista Ana Krasovic, do escritório João Victor Abreu Advogado.
O julgamento no STF apresenta vantagens e desvantagens. Entre os pontos positivos estão a celeridade do processo e o fato de ser analisado por ministros experientes. Entre os negativos, está a ausência de instância superior: “É uma instância única: inexiste possibilidade de apelar da condenação à outra autoridade, tornando o julgamento de mérito definitivo pelo próprio STF”, comentou Attuch.
O foro privilegiado, tecnicamente chamado de “foro por prerrogativa de função”, não é um benefício pessoal, mas uma garantia para o cargo público. “O objetivo é proteger a instituição e o exercício do cargo de perseguições políticas ou pressões que poderiam ocorrer em juízos de primeira instância”, explicou Válio.
Apesar disso, a percepção pública pode ser crítica. “Embora a lógica do foro seja proteger as instituições, a percepção pública é frequentemente a de que existe uma ‘justiça para os poderosos’ e outra ‘para o cidadão comum’. Casos de alta repercussão que se arrastam no STF ou que terminam em prescrição alimentam a sensação de impunidade e privilégio”, analisou Válio.