Por que dona Ruth suportou tanta humilhação? Por Nathalí Macedo

Atualizado em 20 de fevereiro de 2016 às 18:26
Dona Ruth & FHC
Dona Ruth & FHC

Quando escrevi o texto sobre o relacionamento flangrantemente abusivo entre FHC e Míriam Dutra, exatamente como previ, surgiram inúmeras acusações de vitimismo, pessoas mencionando o consentimento da jornalista, a “maturidade” e “independência” que teoricamente nos salvariam da opressão, e, pasmem: a falta de cumplicidade de Mírian, a amante, para com a esposa do homem que amou.

Esse argumento realmente faria sentido, não fosse o fato de as mulheres serem recrutadas, a vida inteira, para competirem entre si. Pior do que isso: para competirem por um homem.

E antes de desconstruí-lo, é prudente esclarecer que não se trata de um circo de horrores acerca da vida alheia, de um episódio sensacionalista daquilo que é particular e teoricamente não nos diz respeito: estamos falando dos papéis que se impõem às mulheres em seus relacionamentos e em suas vidas, de modo geral.

Ruth Cardoso era doutora em antropologia e esteve envolvida em estudos sobre movimentos feministas, étnico-raciais e de gênero, ainda na década de 50, quando esses movimentos não eram tão difundidos fora do ambiente acadêmico. Claramente, uma mulher a frente do seu tempo.

Como, então, uma mulher tão inteligente e socialmente embasada foi traída por seu marido poderoso durante décadas e jamais reagiu?

É impossível determinar suas razões, mas o fato é que, para uma mulher, lidar com a traição – e com a opressão, de modo geral – não é tão fácil quanto filmar o traidor saindo de um motel com sua amante, difamá-lo, postar na rede e aguardar os aplausos, como aconteceu no recente caso da mineira que teve a vida escancarada na internet. Para uma mulher, sempre há inúmeras outras coisas além de uma amante e de um casamento fracassado.

Há os filhos (e, para a sociedade, uma mulher é menos mulher se não abdica da própria felicidade em nome da cria); há a sociedade, que ainda nos convence de que precisamos estar em um relacionamento para sermos realmente plenas, felizes e respeitadas (porque só então se pode dizer que encontramos um homem que nos assuma); Há a romantização da infidelidade (afinal, homens são assim mesmo e se você foi traída, provavelmente deixou que faltasse algo ao seu companheiro); e há, sobretudo, a certeza insana de que a culpa não é dele: a culpada é sempre a outra, a amante, aquela que quer apoderar-se do seu posto de companheira respeitada e “assumida”, e é contra ela que se deve lutar.

No Brasil, somos educadas para sermos apenas mulheres. Nossa educação provinciana, embora já nos permita frequentar universidades, nos esconde a verdade que é a única capaz de nos libertar: nós podemos mais do que sermos as primeiras-damas, as mulheres deles, dos homens que realmente detêm o poder. (Nota: superar isso, vencer a ditadura e chegar à presidência é um feito para poucas).

Tanto é verdade que, quando uma mulher chegou ao poder pela primeira vez, se instalou um verdadeiro caos político que tem um fundo machista inegável (vide os ataques pessoais à figura e à vida pessoal de Dilma Rousseff).

Nós conquistamos o direito de estudar, de votar, de atuar politicamente, mas jamais conquistamos uma educação libertadora (não ainda). Nós somos convencidas de que um bom casamento ainda é o máximo que podemos conseguir.

Nossas relações amorosas estão longe de serem pessoais. Estão envoltos pelos valores patriarcalistas, pela convenção do velho “lugar de mulher” (amando e apoiando incondicionalmente o homem que escolheu). Nosso atrevimento e independência não são incentivados.

No fim, mulheres que podem tanto – como Ruth Cardoso podia – não vão longe. Permanecem no lugar de submissão, lutando por aquilo que, teoricamente, é a única coisa valiosa que podem possuir: um homem bem-sucedido ao seu lado.

É hipócrita cobrar que as mulheres se respeitem e se considerem depois de defender que homens são artigo de luxo e que um homem é tudo o que se pode querer, independente das circunstâncias. Quando você, mulher, se deixa convencer disso, você não larga o osso.

O homem que trai não é o vilão. Ele é a caça.

Aos olhos dos outros, uma mulher que desiste de seu relacionamento com o homem que a traiu e desrespeitou perdeu uma guerra. Deixou que “a outra”, a nossa inimiga permanente, vencesse. O prêmio? Um homem, é claro — mesmo com as precárias virtudes Morais de FHC.