Por que Freud era contra o sionismo

Atualizado em 30 de outubro de 2023 às 20:51
Freud

Publicado na Jacobin 

A psicanálise tem algo a dizer sobre a questão Palestina e o sionismo por um motivo histórico: a última grande obra teórica de Freud, em um texto dos anos 1930, se debruça sobre o que está em causa, genealogicamente, na então crescente demanda por um Estado judeu, e de modo geral sobre a chamada metapsicologia específica da condição judaica – eu me refiro ao seu Moisés & o monoteísmo.

A posição de Freud frente ao judaísmo é bastante dialética: na mesma época ele se filiou ao clube B’nai B’rith, e no seu discurso de filiação, ele enfatizou que, sendo completamente ateu e mesmo antirreligioso, achava crucial insistir no fato de que ele era um judeu; por outro lado, enfatizava que os judeus precisavam parar de se colocar como exceção e, ao contrário, tomarem-se como um dos povos que compuseram o ocidente moderno — ao lado sobretudo da cultura greco-latina.

Freud e o mito do povo escolhido

Em Moisés & o monoteismo, as principais questões que se colocam para Freud são: o que leva os judeus a se tomarem como “povo escolhido”? Quais as consequências de sustentar tal narcisismo? Um dos primeiros efeitos que se pode relacionar com isso é que, na economia masoquista do inconsciente, o preço de tal posição de exceção privilegiada é o de ser, na prática, um povo sistematicamente perseguido, excluído e desterrado – o “povo escolhido” é também escolhido para ser o bode expiatório dos outros povos.

Mas é dessa posição singular que Freud também deriva as qualidades específicas dos judeus: altíssima capacidade de abstração e resiliência, por exemplo – é, mais do que qualquer outra, a civilização da letra, sustentada em um livro e um idioma que curiosamente não tem vogais.

O que Freud tenta efetuar nesse seu testamento intelectual é o equivalente para a sua etnia ao que em um tratamento psicanalítico se chama “travessia da fantasia”: desmistificar a figura de Moisés como fundador do judaísmo reunificado, pois ele seria, na verdade, um egípcio assassinado pelos judeus no episódio da adoração ao Bezerro de Ouro.

Assim, se operaria a queda do ideal de “povo escolhido” para uma posição em que se sustenta uma falta. É por ter sido sistematicamente perseguido e nunca ter tido um Estado-nação que os judeus podem conhecer, e reconhecer, a condição de oprimido de qualquer outro povo, com quem teriam solidariedade a despeito de sua racialidade.

Freud foi, em parte, bem-sucedido, quando vemos rabinos hassídicos se colocando contra o Estado de Israel e a favor da população palestina oprimida por ele; ou, ainda, Michael Brooks, jornalista também judeu, insistindo que não há nada de “complexo” na questão israelense-palestina: de um ponto de vista lógico (simbólico), a questão é simplesmente de o Estado de Israel repetir sobre os palestinos a mesma opressão colonial que historicamente os judeus sofreram – naquilo que Freud um dia chamou “identificação com o rival”.

Os EUA dos anos 1920 como modelo do destino de Israel

Era esse ainda outro motivo pelo qual Freud jamais simpatizou com o sionismo: o risco de que os judeus fizessem com algum outro povo justamente o que sofreram (invertendo os polos de sua fantasia fundamental sem atravessá-la) era muito grande.

Há quem contra-argumente que se Freud tivesse vivido a ponto de ver a solução final das câmaras de gás nazistas, ele mudaria de ideia. Discordo: de alguma forma Freud previa que uma catástrofe como aquela ocorreria.

Por exemplo, no texto recém-lançado de Freud, o Manuscrito inédito de 1931, ele critica a intervenção estadunidense no Tratado de Versalhes. Trata-se de um prefácio a uma biografia do presidente norte-americano Woodrow Wilson, que seria escrita pelo embaixador dos Estados Unidos na Áustria, William Bullitt, e convidou Freud para essa tarefa a quatro mãos. A obra, publicada postumamente, não era reconhecida como contendo o estilo freudiano até que reapareceu em forma de manuscrito com todo seu brilho; Freud pouco antes de morrer autorizou a publicação a contragosto, em gratidão ao esforço diplomático de Bullitt para retirar sua família da Viena ocupada pelo nazismo alemão e dar-lhe asilo na Inglaterra.

Apesar da controversia, essa obra estabeleceu uma espécie de ponte entre o primeiro dos “textos culturais” de Freud, Totem & Tabu, e o último, Moisés & O Monoteísmo, sem deixar de passar por sua obra fundamentalmente antifascista (por antecipação) que é Psicologia das Massas & Análise do Eu.

Nesse breve prefácio recentemente restaurado, Freud propõe uma metapsicologia do cristianismo como prolongamento natural do judaísmo: uma religião que reconhece a castração universal, livrando-se do imperativo do “povo escolhido”. E no que toca o biografado, Freud teme que a intervenção dos Estados Unidos no Tratado de Versalhes, ao invés de por fim com justeza à Primeira Guerra Mundial, preparasse o caminho revanchista para uma outra Guerra — Woodrow Wilson, de formação intelectual provinciana, participa das tratativas idealistas de “paz” que não passam jamais pela materialidade, abrindo, inadvertidamente, caminho para Georges Clemenceau cobrar da Alemanha uma dívida impossível de ser paga.

A capacidade preditiva de Freud (mas também de Lacan) sobre fatos coletivos a partir de sua clínica é notável, quase profética. O que nos leva a crer que, diante da “solução final” dos nazistas contra os judeus, Freud se colocaria, isto sim, ainda mais contrário ao surgimento do Estado de Israel. Freud, certamente, sabia o tamanho da inversão pulsional que um povo que sofreu o Holocausto seria capaz de executar, caso tivesse o poder de um Estado-nação nas mãos, assumindo o papel de algoz — mesmo que fosse seu povo; embora pudesse ser, também, qualquer povo.