Por que não faz sentido privatizar Interlagos. Por Flávio Gomes

Atualizado em 14 de outubro de 2016 às 7:41

interlagos

Do blog do Flávio Gomes.

O prefeito eleito de São Paulo, João Doria, escolheu a palavra “privatização” como mote central de sua campanha, baseada na imagem que vendeu de “gestor”, e não de “político”.

Milionário, adorador do deus da iniciativa privada, curiosamente foi mesmo no setor público que Doria alavancou sua carreira, como presidente de dois órgãos governamentais: a Paulistur, na gestão do então prefeito Mário Covas, de 1983 a 1986, e a Embratur, de 1986 a 1988, no governo do presidente José Sarney.

Embora tenha tentado descolar sua imagem da política tradicional, portanto, Doria ocupou cargos públicos quando entrava na casa dos 30 anos. Na Prefeitura de São Paulo, acumulou a presidência da Paulistur com a função de secretário municipal de Turismo. Só depois de passar pelo governo federal é que engatou uma trajetória claramente vinculada ao ofício de lobista profissional — o que não é crime, diga-se. Suas atividades ligadas ao empresariado brasileiro, com a promoção de encontros, congressos e reuniões, não passam disso.

Com o uso do espaço que conseguiu em emissoras de TV para divulgar suas ações e dar espaço a empresários em seu programa de entrevistas, Doria acabou formando uma teia de relações que o colocou numa posição de “muso” da iniciativa privada. Ampliou seus negócios para áreas como marketing, promoção de eventos e publicação de revistas — a mais sensacional de todas, sem dúvida, chama-se “Caviar”, e é descrita como “uma sofisticada revista de LUXO, que trata com alta qualificação do mercado de luxo no Brasil e no mundo”.

Suas revistas são um sucesso, a julgar pela generosidade com que o governo do Estado de São Paulo as agracia com publicidade oficial. De julho de 2014 a abril de 2015, os contribuintes paulistas colaboraram com R$ 1,5 milhão de propaganda estatal nas páginas de sete de suas publicações. “Caviar” recebeu R$ 501,2 mil por anúncios em nove de suas luxuosas páginas — como se vê, quando a iniciativa privada não ajuda, vamos ao demonizado poder público, que ele garante.

Muito bem. Uma das promessas de campanha do prefeito eleito foi a de vender Interlagos. Sim, “vender”, não apenas “privatizar”. Recorro às palavras do próprio em artigo publicado ontem, dia 12, na “Folha de S.Paulo”. Os grifos são meus.

Pretendo, sim, colocar à venda o complexo do Anhembi e o autódromo de Interlagos. A modelagem dessas ações ainda não foi totalmente concluída e dependerá, é claro, de estudos e discussões. Mas tenho a convicção de que a desestatização será aprovada e gerará vantagens imediatas.

A primeira delas será uma economia de R$ 600 milhões em quatro anos. Esse é o valor que a prefeitura gasta ao longo de um mandato para manter, ainda que de forma precária, o estádio, o autódromo, o centro de convenções, o pavilhão de exposições e o sambódromo municipais.

A outra vantagem são os R$ 7 bilhões que deverão ser obtidos com a venda do Anhembi e de Interlagos. Esse valor, centavo por centavo, irá para saúde e educação.

A prefeitura ganha duas vezes. A primeira, ao deixar de gastar com a manutenção dos espaços. A segunda, ao vender suas propriedades.

Anhembi e Interlagos, hoje, são administrados pela SPTuris, uma empresa de capital misto que tem como uma de suas acionistas a Prefeitura de São Paulo. É sucessora da empresa municipal Paulistur, que Doria presidiu nos anos 80.

Alcino Reis Rocha, em entrevista à mesma “Folha” publicada hoje, dia 13, disse que os números de Doria não batem com a realidade. Segundo ele, “o município não repassa dinheiro para a manutenção do autódromo e do Anhembi”. O autódromo, para ficar no que nos interessa, geraria em quatro anos despesas de R$ 32 milhões. Mas notem: isso não é prejuízo, é custo. A previsão para 2016, é de que Interlagos feche o ano dando lucro de R$ 6 milhões.

É isso que o prefeito quer privatizar? O lucro de Interlagos? Por que cargas d’água o prefeito acredita que esses R$ 6 milhões serão mais belos se usados por algum amigo da iniciativa privada, em vez de ficar nos cofres da cidade?

Doria fala em arrecadar R$ 7 bilhões com a venda do Anhembi e de Interlagos. Não sei direito como chegou a esses valores. Fico me perguntando quem irá dispender de tal quantia para comprar equipamentos que, na visão do prefeito, são um ônus para a cidade, um peso morto, uma fonte de prejuízos.

Não são. De acordo com a SPTuris, o Anhembi vai gerar um lucro para a empresa de R$ 18,7 milhões neste ano. No ano passado, o lucro foi de R$ 59,6 milhões. É um bom dinheiro. Considerando que a SPTuris tem capital misto e a Prefeitura é uma de suas acionistas, parte desse lucro ficou para a cidade.

Portanto, o argumento de que Anhembi e Interlagos dão prejuízo para São Paulo é falacioso.

Mas digamos que o prefeito eleito conheça esses números. Ainda assim, pode alegar que uma venda seria positiva para a cidade — afinal, R$ 7 bi poderiam ser usados para outros fins.

OK. Mas voltamos à pergunta inicial: quem pagaria R$ 7 bi por equipamentos que, juntos, dão lucro de R$ 25 milhões por ano? Numa conta besta, considerando os valores estimados pela SPTuris para 2016, quem colocar R$ 7 bi em Interlagos e no Anhembi levaria 280 anos para recuperar o dinheiro investido.

Mas Anhembi e Interlagos são muito mal administrados, poderiam gerar muito mais dinheiro se estivessem nas mãos da iniciativa privada, alguém pode argumentar. OK. Digamos, então, que a fabulosa iniciativa privada consiga quintuplicar esses lucros com um estalar de dedos. De R$ 25 milhões por ano, Interlagos + Anhembi passariam a dar um lucro de R$ 125 milhões. Os R$ 7 bi voltariam em… 56 anos.

Candidatos?

Acreditar que tudo em que a iniciativa privada coloca o dedo vira ouro é um equívoco monumental, ainda mais num país como o Brasil. Vou reproduzir, na íntegra, o que escreveu o blogueiro “Cassius Regazzoni” nos comentários de post recente sobre Interlagos. É uma descrição precisa sobre esse embate privado x público no país:

Não sei porque fico espantado com manifestações como essa. Esses novos liberais de fachada parecem não saber nada sobre a história do Brasil. Vêm com um discurso datado, criticando uns que denominam de “socialistas” para encobrir muita ignorância e preconceito.

A verdade é que ignoram que a iniciativa privada no Brasil é uma grande merda.

Ignoram que a maioria dos grandes grupos empresariais brasileiros cresceu e fez fortuna às custas do Estado malvadão que sempre atacaram. Vide empreiteiras, bancos e etc.

Tudo de relevante neste país foi produzido pelo Estado. Petrobras, Vale do Rio Doce, Cia. Siderúrgica Nacional, infraestrutura aeroportuária, hidrelétricas, refinarias.

Aí, depois que está tudo pago e amortizado, vêm os filhos de uma puta falar de privatização, financiada pelo BNDES, para gerar receita para uma parcela de amigos abastados. Os caras acham bom, por exemplo, pagar o pedágio mais caro do mundo apenas para dizer que funciona porque é privado.

O empresariado brasileiro morre de medo de correr riscos e hoje vive de juros, pasmem, pagos pelo Estado brasileiro.

Sem a atuação do Estado na economia, o Brasil não teria sequer energia garantida ou boas universidades. Aliás, sem o Estado malvadão, Interlagos não existiria.

Alguém é capaz de encontrar alguma mentira no que o blogueiro escreveu? Aliás, se puder, “Cassius Regazzoni”, identifique-se. O que você escreveu merece assinatura.

Interlagos é patrimônio público. Foi construído na década de 40 por uma empresa privada,a Companhia Auto Estradas (que também fez o aeroporto de Congonhas), e desapropriada pelo município na década de 50 porque seus proprietários pretendiam transformar a pista num bairro planejado. Àquela altura, o automobilismo já tinha um papel importante na vida da cidade e a Prefeitura pegou o terreno e o autódromo para si, indenizando a família que construiu a pista.

Tudo que foi feito ali nesses anos todos saiu dos cofres de São Paulo. A F-1 chegou aqui em 1972, saiu por alguns anos para correr no Rio e voltou em 1990. De lá para cá, o autódromo passou por reformas e melhorias. A corrida traz divisas para a cidade e é o evento mais importante do calendário municipal em termos de geração de impostos.

Entre as funções de uma prefeitura está a de promover atividades esportivas para sua população, sem discriminar quem os pratica. Se é legítima a construção de piscinas, pistas de skate, campos de futebol, parques, quadras de basquete e futsal, é igualmente legítima a propriedade e manutenção de um autódromo. Não fiz nenhum levantamento, mas posso afirmar, pelo que conheço mundo afora, que a imensa maioria dos autódromos no exterior pertence a governos. Quando muito, são geridos por entidades privadas — como em São Paulo.

Tem muita gente que vive de automobilismo em São Paulo e no Brasil. Interlagos tem uma função social. Gera empregos e movimenta e economia. Por que, então, um patrimônio que é da cidade há mais de meio século tem de ser simplesmente vendido? E mais: quem vai comprar? Mais ainda: quem comprar vai fazer o quê com o autódromo? E de onde tiraram essa premissa que qualquer equipamento público tem de dar lucro para quem quer que seja?

Equipamentos públicos dão despesa, porque cabe a uma prefeitura bancar sua existência para que o público dele usufrua. Se as coisas não são como gostaríamos em Interlagos, isso se deve muito menos ao poder público do que a quem comanda o automobilismo em São Paulo e no Brasil. Estou falando de entidades como a FASP e a CBA e dos clubes cartelizados que ganham dinheiro com esse equipamento público. De certa forma, o uso de Interlagos já é privatizado. Ninguém usa aquilo de graça quando se fala de sua atividade principal, o automobilismo. Não é justo que se diga que a população paga para gente rica correr de carro. Ricos ou não, os que correm de carro pagam para usar o autódromo. E não pagam pouco.

Assim, essa história de que Interlagos tem de passar às mãos da infalível iniciativa privada para deixar de dar prejuízo e virar um oásis de qualidade e eficiência é conversa. Primeiro, porque não dá prejuízo. Segundo, porque só não é oásis de nada porque os usuários não cobram de quem deveriam — de novo, federação, confederação e clubes — aquilo que teriam direito de receber.

O problema de Interlagos não é ser de propriedade da cidade, nem o fato de ser administrado por uma empresa que tem participação acionária do poder público. O problema de Interlagos é a estrutura do automobilismo nacional e regional. Essa, sim, é um desastre. E, até onde se sabe, entidades e clubes não são públicos. São privados. Bem privados.

Apontem seus canhões na direção certa. É tudo que posso dizer.