Por que não ir para as ruas? Por Ricardo Kotscho

Atualizado em 23 de outubro de 2019 às 19:32
Foto: Reprodução/ TV Gazeta

Do Balaio do Kotscho:

Nada acontece por acaso. Só nesta terça-feira, graças à minha amiga jornalista Dina Amendola, que me enviou o texto por e-mail, pude ler o artigo de Vladimir Safatle publicado na página de opinião do jornal espanhol El País, no último dia 14 de setembro.

Entre o balaio de mensagens que recebo todos os dias, esta me chamou a atenção pelo título “Chega de diálogo”.

No momento em que o mundo está virado de pernas para o ar, com rebeliões populares pipocando por toda parte contra a ordem constituída, este artigo vai na contra-mão dos que pregam o diálogo para encontrar soluções pacíficas às crises políticas, sociais e econômicas deflagradas pelo modelo neoliberal vigente que só aumenta a desigualdade social.

Quem me conhece sabe que, por formação familiar e profissional, sempre fui um defensor do diálogo entre opostos e das saídas pacíficas para as tantas crises que vivemos no Brasil nestes últimos 50 anos.

Sobreviventes da Segunda Grande Guerra, meus pais vieram para o Brasil em busca de paz e não gostavam nem de lembrar os horrores que viveram para escapar das bombas e da fome, o que talvez explique minha aversão a conflitos.

Pacato professor de filosofia da USP, Safatle me fez pensar, diante da trágica realidade em que vivemos hoje no país, e da completa inação da população, se não é hora de mudar nosso comportamento conformista e condescendente.

Tenho pavor de violência, nunca peguei numa arma nem de brinquedo, não posso ver sangue e gente ferida nem em filmes de guerra, passo ao largo de acidentes na rua ou na estrada, abomino esses programas policiais da TV.

Sou, enfim, já passado dos 70, um cidadão absolutamente pacífico e inofensivo, que sempre lutei como repórter apenas com as palavras por democracia, liberdade e justiça social, denunciando o que está errado e louvando o que bem merece. Em uma palavra, me qualificaria como um humanista, como se dizia antigamente.

Pois bem, mexeu muito comigo esta outra visão da realidade que me foi apresentada pelo professor Safatle.

Na abertura da matéria, ele resumiu assim seu pensamento bastante original sobre o Brasil:

“Se há algo que marcou o Brasil nos últimos trinta anos foi a profusão de diálogo, quando muitas vezes é necessário dar forma à recusa clara em dialogar. Não é de diálogo que o Brasil precisa. É de ruptura”.

Como se daria esta ruptura?  Esta é a dúvida que me ficou na cabeça ao terminar de ler o artigo reproduzido abaixo para a reflexão dos leitores.

Em vários países aqui ao lado, nos últimos dias, o povo está dando a resposta nas ruas, em grandes manifestações, como há tempos não se via, enfrentando uma repressão brutal dos governos de plantão.

Sempre é bom confrontar as nossas certezas com quem pensa diferente.

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Chega de diálogo. A partir de certo ponto é apenas inútil

VLADIMIR SAFATLE

“De todas as ilusões que se desfazem atualmente no Brasil, uma das mais urgentes a se livrar é aquela que leva alguns a acreditar que nosso momento histórico pede mais diálogo. Ao contrário, é possível que chegou enfim a hora de dizer claramente: chega de diálogo. A partir de um certo ponto, dialogar é não apenas inútil. É espúrio. Se há algo que marcou o Brasil nos últimos trinta anos foi a profusão de diálogo. Nosso fim da ditadura foi “dialogado”. Antigos oposicionistas, militares torturadores, empresários que apoiaram o golpe e financiaram crimes contra a humanidade: todos eles “dialogaram”, fizeram uma transição “sem revanchismo” (como se dizia a época), sem nenhum terrorista de estado na cadeia. Depois, os governos da Nova República eram todos marcados pelo “diálogo” entre esquerda e direita, mesmo o PP que abrigou o sr. Jair Bolsonaro por 27 anos estava em todas as coalizões de governo. Todos “dialogaram” com Bolsonaro, mesmo quando ele expunha claramente seu desprezo a princípios elementares de direitos humanos. Em uma situação minimamente normal, seus impropérios como deputado teriam lhe valido a cassação de mandato. Como se não bastasse, até mesmo com as igrejas evangélicas o que não faltou foi “diálogo”. Edir Macedo estava lá “dialogando” com Lula e Dilma. O PSC do sr. Marco Feliciano fazia parte da coalizão de Dilma Rousseff. Mais um com quem não faltou “diálogo”.

Neste sentido, a experiência brasileira é pedagógica em mostrar quão pouco se consegue com diálogo. Na verdade, o diálogo é nossa pior maldição. Muitas vezes, é necessário dar forma à recusa clara em dialogar. Quem dialoga com pessoas que louvam torturadores e assassinos como “heróis nacionais” não sabe qual o valor das palavras. Quem procura dialogar com aqueles que sustentam ações ambientais criminosas e tentam por todos os meios esconder a catástrofe que produz até o momento em que o céu de São Paulo se torna escuro por confluência com nuvens de queimadas, perde seu tempo. Não é de diálogo que o Brasil precisa. É de ruptura.

Vejam o caso da destruição da Floresta Amazônica. Nunca o Brasil foi tão claramente colocado na posição de estado-pária pela opinião pública mundial, nunca estivemos tão isolados e dependentes do bem querer dos norte-americanos para evitar uma reação brutal do resto do mundo. Não é só o governo francês que está em rota de colisão conosco. Noruega e Alemanha já suspenderam ajuda econômica à Amazônia. Ou seja, as consequências econômicas só estão a começar. Multinacionais começam a boicotar o couro brasileiro, em breve grupos ecologistas começarão a fazer campanha contra o Brasil. Nunca na história desse país alguém viu algo parecido. Agora pergunte se isso levou o governo brasileiro a modificar sua política ambiental? A resposta é: em nem um milímetro. Infelizmente, o único “diálogo” que latifundiários com mentalidade colonial e assassinos de índios compreendem é o boicote econômico.

Agora, também fica claro o caráter da elite econômica que sustenta este governo. Há algumas semanas, o presidente do banco Itaú Unibanco, o sr. Candido Bracher, o mesmo banco que bate recordes de lucro líquido enquanto a economia nacional estaria pretensamente em “crise”, mostrou quais são seus verdadeiros interesses. O representante-mor do partido do Dinheiro deu a entender que as declarações de Bolsonaro, fator fundamental para a explicitação da democracia degradada em que vivemos, não afetavam o que realmente importa, a saber, as reformas que privilegiam a elite rentista brasileira. E ainda de quebra afirmou que 12 milhões de desempregados não é algo que realmente deveria nos preocupar, pois isto ajudaria a quebrar a pressão inflacionária.

Os milhões de brasileiros que voltaram à pobreza, os milhares que voltaram à miséria nas ruas da cidade na qual este senhor habita não parecem realmente perturbá-lo. Da mesma forma, ninguém no Partido do Dinheiro está preocupado com o crescimento pífio da economia nacional e com o horizonte de retração que avizinha. Eles se preocupam apenas com a próxima leva de privatizações que aproveitarão como abutres que crescem em volta do poder. Achar que é possível dialogar com esta classe foi uma das mais crassas ilusões que marcou este país. Que ao menos tudo isto sirva para ficar claro contra quem combatemos.”

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Gostaria de saber a opinião dos caros leitores sobre o texto de Vladimir Safatle. Logo aqui abaixo está aberta a área para comentários.

Este artigo, é preciso registrar, foi escrito antes da eclosão das revoltas populares na nossa vizinhança.

Vida que segue.