Em 2011, quando era ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante participou de um encontro da OCDE e recebeu, em nome do Brasil, convite para entrar na organização.
“A minha resposta foi essa: nós estamos bem namorando, satisfeitos com o namoro, quem sabe mais para a frente a gente fica noivo, mas casar não”, recorda Mercadante.
Em 2007, o país já tinha sido formalmente convidado para entrar na OCDE, mas também recusou. E por quê?
“Porque o Brasil perdia, e perde. Tem que abrir mão de alguns instrumentos de países em desenvolvimento. Nossa prioridade era os Brics e a relação Sul-Sul”, afirma, nesta entrevista ao DCM.
Estar na OCDE não significa imunidade a crises. Por exemplo, nos governos petistas, o Brasil tinha grau de investimento sem ser da OCDE e a Grécia, embora membro da organização, quebrou, foi à moratória.
Nesta entrevista, Mercadante, que é economista, fala também sobre a possibilidade de retorno de um governo progressista ao Brasil e sobre a candidatura do PT à prefeitura de São Paulo.
DCM: O que significa o apoio dos Estados Unidos para o Brasil entrar na OCDE?
Mercadante: Primeiro, como muita coisa que caracteriza o Trump e o Bolsoanaro, esta é uma tentativa de desviar o foco do imenso prejuízo que o acordo comercial China-Estados Unidos provocará sobre as exportações brasileiras. A China terá que importar 200 bilhões de dólares em dois anos dos Estados Unidos. A mais. Isso irá deslocar parte das exportações brasileiras, com impacto que seguramente terá sobre a agricultura, que é basicamente carne, soja e demais grãos.
DCM: Esse apoio foi para tirar o foco desse prejuízo?
Mercadante: Foi. Nós teremos um deslocamento do nosso acesso ao mercado chinês, com uma perda estimada de 10 bilhões de dólares, o que é bastante porque as exportações brasileiras vêm caindo. Já em 2019, tinham caído dois por cento com a China, desabaram no Mercosul.
DCM: É o resultado da política de submissão a Trump?
Mercadante: Sim. Essa política externa de submissão completa ao Trump e de atritos com outros países, como o mundo árabe e a própria China e a América Latina, levou ao isolamento, e será difícil abrir novas portas nesse cenário.
DCM: Mas não é bom ser considerado um país rico?
Mercadante: O país tem que ser rico, não parecer rico. Depois, a indicação dos Estados Unidos não significa, necessariamente, o acesso à OCDE. São 36 países e o Bolsonaro conseguiu criar atritos severos com vários países da União Européia. E os parlamentos desses países, certamente, reagirão fortemente em função da questão da Amazônia, da cultura, das agressões à França e tudo mais que representa Bolsonaro. Portanto, haverá muita dificuldade. Não haverá nenhum acesso imediato.
DCM: Especificamente, em que o Brasil perde com a entrada na OCDE?
Mercadante: Ao aderir à OCDE, você abdica de alguns instrumentos de defesa comercial que são fundamentais para os países em desenvolvimento: políticas de compra de estado, agregação ao conteúdo local. A OCDE é um clube dos ricos que tem como foco principal fortalecer as regras de mercado. É uma instituição que tem como objetivo estratégico avançar na agenda neoliberal.
DCM: É por isso que Trump apoiava a Argentina sob Macri?
Mercadante: Claro. Trump apoiava a Argentina em outubro, quando era o Macri e já havia na Argentina a deterioração do balanço de pagamento, inflação, deterioração das contas públicas, desemprego, pobreza. Assim que o Macri perde a eleição, Trump muda para apoiar o Brasil porque o Bolsonaro é um aliado que nesse momento interessa a eles para tirar o foco da primeira etapa do acordo com a China.
DCM: O que é a OCDE?
Mercadante: Eles têm 23 grupos de trabalho. É uma instituição que não tem nenhum poder vinculante, nenhuma condicionalidade vinculante. Por exemplo, no Mercosul você tem cláusulas comerciais, tarifas comuns, liberdade migratória. Não tem esses instrumentos. O fato de você estar lá não significa imunidade a crises. A Grécia faz parte e vive uma crise de balanço de pagamentos dramática. Estar lá não significa que as portas do mercado vão mudar. Não vão. É evidente que você, cumprindo essas regras de fundamento de mercado, abdica de instrumentos como, por exemplo, a possibilidade de ter controle de capitais, fortalecimento de empresa públicas estratégicas, iniciativas de regulação do sistema financeiro.
Agora, você tem discussões de aprimoramento de políticas públicas, mas sempre com esse foco central que é o de fortalecer as regras de mercado.
DCM: Por que o Brasil recusou entrar para a OCDE nos governos de Lula e Dilma?
Mercadante: Porque decidimos que o Brasil, em vez de entrar no clube dos ricos, iria buscar articular os países em desenvolvimento. Toda nossa estratégia foi fortalecer a relação Sul-Sul. Os Brics tiveram um papel extraordinário, tanto da mudança das regras do Fundo Monetário Internacional, aportaram recursos, e foram ganhando relevância em todos os fóruns econômicos e políticos relevantes. E nós estávamos fortalecendo exatamente essa articulação. A constituição do banco dos Brics, o fundo de reservas, o acordo de reservas em que você poderia ter apoio de cada um dos países membros. Agora o Brasil abdicou dessa estratégia e da integração regional. Acabou de sair da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), que presidia, e agora vai ser presidida pelo México. A Celac é importante para integrar a América Latina e fortalecer a região.
DCM: Quais as consequência dessa política externa?
Mercadante: Significa uma mudança geopolítica de submissão que vai ter mais amarras, além daqueles que são feitas internamente, e a abdicação de um projeto soberano de inclusão social, de economia compartilhada, que não seja apenas a economia com a lógica da competitividade do mercado.
DCM: O senhor não tem dúvida, portanto, de que economicamente perde…
Mercadante: Eu não tenho dúvida de que perde. Já perdeu, por causa do acordo comercial EUA-China, que tem essa névoa. A entrada na OCDE não é para agora, é para daqui a alguns anos, vai ter uma imensa resistência dos países europeus. Portanto, não está dado. Não é porque os Estados Unidos apoiaram que o Brasil vai entrar. Primeiro porque não entramos. Segundo, não sei se interessaria entrar. É muito mais interessante criar uma estrutura de integração dos países em desenvolvimento, que é o que os Brics estavam patrocinando. É muito mais interessante do que aderir ao clube dos ricos, achando que é um novo rico quando não é. É um país em desenvolvimento. Você está abdicando de instrumentos de desenvolvimento.
DCM: É fato que o Brasil foi convidado para entrar na OCDE no governo Lula?
Mercadante: Em 2007, teve um convite formal. Eu estive lá em 2011, também fiz uma apresentação lá para todo o plenário da OCDE, eles voltaram a fazer o convite, e a nossa política era a seguinte: “Olha, vamos continuar namorando porque nós estamos bem assim. Quem sabe, fiquemos noivos. Mas nós não queremos casar. Nós participávamos das discussões, participávamos de algumas iniciativas que eles patrocinam, mas não tínhamos interesse. Nossa prioridade era fortalecer os Brics. E os Brics também tinham a mesma visão. Estávamos todos trabalhando nessa perspectiva.
DCM: Em que condição senhor falou na OCDE?
Mercadante: Em 2011, eu era ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, me fizeram o convite e eu fui naquele evento, evidentemente com o consentimento da presidenta Dilma e o conhecimento do Ministério das Relações Exteriores. Fui lá fazer uma discussão, apresentar as nossas políticas públicas, especialmente o que nós estávamos fazendo na área de educação, ciência, tecnologia e inovação, os projetos novos que estávamos lançando e a OCDE formalizou novamente o convite. A minha resposta foi essa: nós estamos bem namorando, satisfeitos com o namoro, quem sabe mais para a frente a gente ficar noivo, mas casar não.
DCM: E era época em que o Brasil sempre ganhava graus de investimento…
Mercadante: E o Brasil ganhou grau de investimento sem estar dentro, a Grécia foi à moratória, ao colapso econômico e era membro.
Então, isso não muda.
DCM: A recusa de entrar na OCDE não podia trazer problemas para o país?
Mercadante: Não. O que você não pode ser é problema para a economia mundial. Você tem que ser parte da solução. E para isso você tem que ter prudência. Nós acumulamos reservas cambiais para ter um seguro estratégico. Já queimaram 10% das reservas, o que é uma irresponsabilidade nesse cenário de instabilidade.
Agora mais uma novidade perversa: o desdobramento do posicionamento do Brasil em relação ao Irã. Nós temos dois bilhões de dólares de superávit.
Acho que nossa política externa de submissão completa é absolutamente errática.
Os Estados Unidos estão deslocando nosso mercado para ocupar. O Trump é Estados Unidos first (em primeiro lugar), o Bolsonaro também. Esse é o problema.
DCM: No caso da volta de um governo progressista no Brasil, o senhor acredita que dá para recuperar? Recuperar tudo o que se perdeu?
Mercadante: Eu acho que nós temos uma agenda nova, que é o desafio de uma economia pós ajuste neoliberal. Essa ortodoxia fiscal permanente, a emenda constitucional 95, associada à meta de superávit com a regra de ouro, é o engessamento completo dos gastos públicos. Em função desse engessamento, você está tirando os pobres do orçamento, destruindo as políticas sociais e a crise social vai se agravar, e o que estamos vivendo no INSS é só a ponta do iceberg.
DCM: Como assim?
Mercadante: Nós tivemos 6 mil servidores dos 23 mil que se demitiram ou se aposentaram, em função da discussão da reforma, e a demanda por aposentadoria cresceu exponencialmente.
DCM: Mas os militares aposentados foram chamados para atuar na redução das filas…
Mercadante: É quase uma provocação colocar militares, e isso não vai resolver o problema das filas. Você precisa de especialistas para acelerar os processos e eles estão pedalando em cima da aposentadoria dos pobres. Como eles eles estão pedalando para tirar a vinculação dos gastos com educação e saúde. Isso vai desmontar a saúde pública e a educação pública. Eles têm um projeto, é o projeto do estado mínimo. É o projeto da mercantilização dos serviços públicos.
DCM: Que modelo é este?
Mercadante: Como o Guedes disse, o Chile é o modelo deles. Por sinal, o Piñera ontem aumentou a contribuição. Foi de 11 para 16 por cento da Previdência. E as empresas vão pagar. Eles estão saindo do modelo de capitalização: 82 por cento dos aposentados chilenos ganham até um salário mínimo. E as manifestações continuam. O governo Piñera está sem a menor condição de governabilidade e fazendo concessões erráticas pelo desastre histórico e social que foi esse modelo neoliberal, que era a grande promessa do Guedes para o Brasil.
DCM: O senhor acredita que os progressistas voltam ao governo no Brasil?
Mercadante: Eu não tenho dúvida de que voltarão. Esse Brasil que nós construimos o brasileiro já tem saudades. Cada ano que passa, essa saudade fica mais forte: o contraste que foi o que aconteceu depois do golpe e o que foram os treze anos de governo popular do PT, Lula e Dilma, a soberania de inclusão social, a distribuição de renda, o protagonismo de autoestima, de democracia, os valores republicanos.
Eu tenho certeza de que voltará. Mas agora qual será o país que nós vamos encontrar não dá ainda para saber, mas os desafios crescem a cada dia.
Agora, não podemos esquecer que em 2003 nós estávamos no FMI, quebrados, sem reservas cambiais, com uma dívida pública, de pressão inflacionária. Nós trabalhamos muito para reverter, e conseguimos.
Agora esse governo é um desastre, desastre de grandes proporções.
DCM: O senhor é candidato a prefeito?
Mercadante: Não, eu te falei que não ia ser. Não existe essa possibilidade. Isso eu já deixei claro para o partido. Não há hipótese. Há outros candidatos, articulações, nem estou participando muito disso.