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Por que o “cabelo bombril” de uma funkeira incomodou tanto a socialite. Por Cidinha da Silva

Ludmilla

 

A peruca de cabelo crespo da funkeira e musa do Salgueiro, Ludmilla, suscitou crítica da socialite Val Marchiori.  “A roupa está bonita, a maquiagem também. Mas esse cabelo está parecendo um bombril”, disse a comentarista de carnaval na RedeTV.

Estamos acostumados ao uso do blackface e das perucas de cabelo crespo para caracterizar o que os racistas chamam de “nega maluca”. Entretanto, esse episódio de discriminação a uma mulher negra de cabelo black power sintético evocou aspecto interessante da peleja estereótipos raciais x empoderamento negro.

A primeira novidade é que em tempos de ativismo político virtual, as reações textuais ou em vídeo de certos protagonistas a essas falas e atitudes discriminatórias, conseguem sintetizar anseios e descontentamentos de milhares de pessoas que se sentem representadas por aquela performance. Como resultado da disseminação viral, instaura-se ou amplia-se o espaço de debate.

Tem sido assim com a crítica fundamentada aos estereótipos raciais, feita por jovens intelectuais negras na Web. Neste carnaval focou-se a “mulatização” das mulheres brancas, às quais, é permitido liberar durante os dias de folia, a lascividade de uma “mulata interior assanhada”, conforme declarou Grazie Massafera a respeito da “mulata guardada dentro de si.”

Em 2014, materializou-se na discussão do constrangimento imposto a Nayara Justino, após sua eleição como Globeleza. Naquele momento, os apologistas da mulatice a consideraram preta demais para ocupar o posto de objeto sexual mais desejado do carnaval televisivo. Afinal, sua presença subvertia o ditado colonial ainda operante: “preta para cozinhar, mulata para fornicar e branca para casar”.

A segunda novidade, aliada à reação da intelectualidade negra, é o empoderamento estético dos afrodescendentes que se valem das perucas de cabelo crespo como elemento de afirmação identitária, como constituição do real poder negro.

Ruey Newton, ideólogo do Partido dos Panteras Negras pela Auto-Defesa, nos EUA dos anos 1970, argumentava: “nós queremos o poder negro e, por poder, entendemos a capacidade de definir um fenômeno e conduzir o fenômeno a partir da nossa definição”.

Esse poder, só para permanecer no campo das obviedades, incomoda aos herdeiros da casa grande. Faz com que a socialite, acostumada a ver Ludmilla no showbizz com cabelos longos e lisos, julgue-a “feia” ao usar uma peruca de cabelo crespo que lembra a ela a palha de aço. Na verdade, um cabelo sustentado por cultura e memória que fala por si mesmo e irrita olhares viciados e racistas.

 

Cidinha Silva

Cidinha da Silva, mineira de Belo Horizonte, é escritora. Autora de "Racismo no Brasil e afetos correlatos" (2013) e "Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil" (2014), entre outros.

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