Por que o grande capital colocou o lumpesinato no poder? Por Artur Araujo e Gilberto Maringoni

Atualizado em 24 de maio de 2019 às 18:00
O presidente Jair Bolsonaro — Foto: Evaristo Sá/AFP

PUBLICADO NO BRASIL DE FATO

POR ARTUR ARAUJO E GILBERTO MARINGONI

O professor Armando Boito Jr., da Unicamp, escreveu em 21 de abril no Brasil de Fato o artigo “A burguesia, o ‘lumpesinato’ e o governo Bolsonaro”. Trata-se de uma crítica ao texto “O lumpesinato no poder”, de nossa autoria, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, no início daquele mês.

Boito é uma das referências na Ciência Política no Brasil, não apenas por sua sólida carreira intelectual, mas por ser um dos acadêmicos que se coloca também como dedicado militante das boas causas.

Em suas linhas, Boito vê em nosso texto a afirmação de que o lumpemproletariado teria assumido, como classe social, o poder de Estado no Brasil, em substituição à burguesia e suas frações. De saída, queremos dizer que ele tem razão em criticar tal ideia, mas que não é uma ideia que defendemos, nem no texto nem como concepção. Em suas palavras:

“A ideia segundo a qual seria o lumpesinato que ocupa o poder é sedutora. Jair Bolsonaro é um político abjeto, inimigo jurado da democracia e do socialismo, e concebê-lo, não apenas como integrante, mas também como representante político do lumpesinato alivia o justo ódio que sentem por ele todos aqueles que amam o povo trabalhador. Ademais, a tese parece esclarecedora, pois, de fato, a equipe de governo é formada por políticos desclassificados, militares desocupados, professores que fracassaram na academia, economistas marginais, coiteiros de milicianos e alpinistas sociais de história duvidosa. No entanto, sabe-se que nem sempre as coisas são o que parecem ser”.

Logo adiante, o professor explica:

“A teoria política marxista ensina que é necessário distinguir aquele que toma a decisão – eventualmente, um economista neoliberal desprezado pelos próprios neoliberais ou um militar desprezado pelos militares – daquele que se beneficia com ela – o capital internacional, os grandes bancos etc. Definir a natureza de classe de um governo a partir do pertencimento social da equipe governamental é um equívoco teórico que induz a erros na prática política”.

Entendimentos distintos

A origem do entendimento de Boito – que, reiteramos, não é o nosso – está em uma redação pouco explícita, falha provocada, também, pelo propósito central do artigo: desenvolver o tema do “comportamento lúmpem” – e das manifestações de setores marginais à tradição política brasileira exercendo a gestão do Estado burguês – e não uma clássica análise de classes, que revelasse o caráter do governo e os interesses estruturais em jogo.

Buscamos evidenciar uma mudança na representação política institucional, revelada nas eleições de 2018. Escrevíamos nós:

“O governo de Jair Messias Bolsonaro representa um feito inédito em termos mundiais. Trata-se da primeira vez em que o lumpesinato, de forma organizada, chega ao poder de Estado. Não existe experiência semelhante em países da dimensão do Brasil”.

Temos plena concordância com Boito na caracterização do governo Bolsonaro como um governo do capital (representado por lúmpens de diversas classes), com hegemonia dos setores burgueses da finança e os diretamente associados ao imperialismo. São sócios menores nesse governo – e mantendo contradições secundárias com seu programa ultraliberal, marcadamente conservador, fortemente autoritário e com tentações antidemocráticas e neo (ou proto) fascistas – a burguesia interna (industrial, agropecuária, do comércio e dos serviços), elites do combo judiciário/ MP/ polícias, elites do aparato de Estado, meios de comunicação oligopolistas, oficialato das FFAA, múltiplos setores de pequena burguesia (proprietária, profissional “liberal” e assalariada). É um governo que conquistou respeitável base institucional popular via eleições, base agora começando a se esgarçar frente à experiência concreta (o mesmo ocorrendo com parte significativa dos sócios menores).

Confluência de interesses

Apesar de não termos dado a ênfase apontada por Boito, o caráter de classe do governo está assinalado no seguinte trecho:

“O governo Bolsonaro resulta de uma confluência de interesses solidamente enraizados na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, a representação institucional – ou expressão política – dessa coalizão parece materializar profundas alterações ocorridas desde o final da ditadura (1964-1985) na composição social do país.

O período é marcado por um processo de desindustrialização, privatização e desnacionalização de empresas que se soma à desregulamentação e fragmentação do mundo do trabalho. Ramos inteiros da produção deixaram de existir, a indústria de transformação reduziu sua participação na formação do Produto Interno Bruto (PIB) e o país assistiu sua burguesia industrial vender empresas e tornar-se mera montadora, maquiadora, empacotadora e, principalmente, especuladora no mercado financeiro, beneficiando-se de uma das mais altas taxas de juros do planeta. A burguesia associada do capital externo vai se tornando uma burguesia compradora e rentista”.

Caracterização insuficiente

Embora estivesse implícita em nosso artigo a gama de interesses reais a sustentar o governo, para além de sua representação política, reconhecemos que a caracterização foi feita de forma insuficiente.

Nossa tese central é a da singularidade que o governo Bolsonaro marca na história brasileira. As classes dominantes, em função da crise de representação de seus partidos e personalidades “tradicionais”, se viram obrigadas a apostar no bolsonarismo como única arma disponível para derrotar o lulismo/petismo e inaugurar um novo ciclo de “acumulação por espoliação” como elemento estrutural. Com isso, introduziram na gestão do Estado métodos, comportamentos, códigos, linguagens, procedimentos, totalmente distintos daqueles que faziam parte do arsenal conhecido à direita e à esquerda.

O bolsonarismo – que, por ser lúmpem, opera muito na infralógica e no universo de sentimentos primários e contraditórios – viceja no conflito contínuo e, assim, vai se tornando disfuncional para seus sócios menores – setores econômicos que dependem do mercado interno – e para o país. No futuro, pode até vir a se tornar disfuncional para as frações hegemônicas da burguesia no Brasil, caso a contração econômica e o desmonte do Estado coloquem em xeque o conjunto da reprodução ampliada do capital, como consequência de uma desorganização econômica e social generalizada

Vale frisar que o lumpesinato não é uma “classe com o poder de Estado”, mas um emaranhado de gentes e interesses exercendo, por procuração, a gestão do Estado e tendo por meta a execução do programa burguês hegemônico.

Crise de representação

Com base nesses pressupostos, várias perguntas podem ser feitas:

Por que motivos a representação política do grande capital se faz através de um setor que, até outubro de 2018, era marginal à vida institucional do país?

Por que uma das dez maiores economias do mundo apresenta como instrumento de dominação de classe agentes incapazes de montar uma coalizão burguesa estável e previsível?

Por que, a partir de determinado ponto, a institucionalidade pactuada na Constituição de 1988 tornou-se um empecilho determinante para a burguesia no Brasil, que sempre criticara o caráter altamente progressista da Carta, mas convivera confortavelmente com ela ao longo de distintos governos

Por que as classes dominantes no Brasil se valeram de um aventureiro cercado de bárbaros antidemocráticos, como se a partir de tal falange pudessem exercer, sem maiores riscos e sobressaltos sua hegemonia e controle sobre a sociedade nacional?

Essas são, a nosso ver, as grandes questões colocadas diante dos que pesquisam e atuam na vida política nacional, de um ponto de vista democrático e popular.

São as respostas a essas perguntas que buscaremos elaborar em trabalhos a serem publicados brevemente.

*Artur Araujo é ex-diretor da Embratur e consultor da Federação Nacional dos Engenheiros e Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.