Até quando os ciclistas paulistanos serão tratados como lixo?

Atualizado em 17 de outubro de 2014 às 14:32

Se Copenhague é a referencia mundial em bicicletas, São Paulo segue o caminho completamente oposto.

O autor, seu filho Martim e amigos a caminho de Machu Picchu

Cidade Jardim e  JK Iguatemi são os dois shopping centers de São Paulo unidos pelo luxo e separados pelo lixo.

Um fica quase em frente ao outro. O que os separa – e reflete – é o leito denso, escuro, fedido e meio opaco do Rio Pinheiros, ladeado por uma via expressa, uma ferrovia que vem dos subúrbios e uma ciclovia. Foi nesses caminhos, a cara dos caminhos de São Paulo, que eu, sem querer, me meti.

Em Macchu Picchu, no Peru, conheci um senhor belga que atravessava os Andes, do Equador à Argentina, numa bicicleta. Ficamos amigos. Fui visitá-lo na Bélgica e percorremos juntos as ciclovias do interior da Valônia, o lado francês do país, às margens dos rios Sambre e Meuse. Terra dos monges e mosteiros trapistas, e de algumas das melhores cervejas do mundo, como as de Dinant, Leffe e Floreffe, perfeitas como hidratante de que os ciclistas tanto precisam. Gostei tanto da brincadeira que decidi me tornar cicloturista também.

O primeiro passo foi comprar a bicicleta. Os preços e o medo de roubo de uma bicicleta tão luxuosa quanto os shoppings às margens do Pinheiros me levaram a escolher uma usada. Como vocês vêem, eu sei muito bem que não moro na Bélgica.

É preciso muita persistência para ser um ciclista em São Paulo.

Você sabe o que é “chain stay”? E “bike fit”? Alivio, Altus ou Deore? Qual o melhor, alumínio ou cromoly? Se sabe tudo isso, é ciclista dos bons. Eu não sabia, e tive que aprender qual a melhor distância entre o pedal e o eixo traseiro pra uma bicicleta de turismo, quais as outras medidas certas para o meu corpo, quais os câmbios, freios e relações de marcha adequados a uma viagem longa, e conhecer os materiais mais resistentes.

Quando terminei a pesquisa sobre o equipamento mais adequado ao bolso e ao terreno, comecei outra sobre onde encontrá-lo. A primeira visita foi a uma antiga bicicletaria na rua Vitória, em plena boca do lixo paulistana. A intensa proximidade –  eu diria promiscuidade – entre o luxo e o lixo em São Paulo começava a se insinuar e iria me acompanhar o tempo todo daí pra frente. A segunda foi a uma das lojas de uma famosa multinacional francesa. Apesar da fama e da origem, o mostruário não oferecia nada parecido com aquilo a que os “randonneurs” europeus – ciclistas de longo percurso – estão acostumados.

A busca continuou aqui mesmo, diante deste mesmo computador, que tanto serve para procurar quanto para expor. Uma bicicleta ou uma história, tanto faz. Achei várias, mas sempre faltava alguma coisa. Até que encontrei o que queria: uma japonesa Myiata, que não era uma touring puro-sangue, mas uma mountain decente, com suporte para bagageiro e um chainstay apropriado em cromoly, uma liga de aço leve, resistente e fácil de soldar em caso de necessidade. Fiz o lance no site de compras, fechei o negócio e recebi o endereço para retirar.

A loja – quer dizer, a bicicletaria – ficava no final da rua Baianópolis, endereço tipicamente paulistano, embora estivesse fora de São Paulo, capital. A rua Baianópolis começa na Avenida Santa Helena, que começa na… via Dutra. Depois do centro de Guarulhos, um pouco após o aeroporto de Cumbica. Claro que para chegar lá eu precisei fazer nova pesquisa, no Googlemaps, imprimir o trajeto e, mesmo assim, me perder, parar e perguntar como antigamente, pois o mundo real insiste em não se encaixar no virtual.

Cheguei enfim a um bairro típico de periferia da periferia, com gente sentada no sofá na calçada, já que dentro de casa ele não cabe. De longe vi a “minha” bicicleta azul e branca pendurada na parede da bicicletaria do Aleksandro, cujo nome me inspirou confiança numa competência técnica soviética, que ele realmente tinha. Estava entretido por uma roda de clientes que lhe faziam perguntas difíceis na mesma linguagem que eu acabara de aprender: aro de aço carbono, quadro speeditaliano Vicini ou Campagnolo, rodas 700c, cantilever, V-brake.

Logo percebi que tinha feito um bom negócio e estava no lugar certo. A oficina – “lojinha” para o dono – era uma mistura de junkyard de Guerra nas Estrelas e oficina do Gepetto. Tinha de tudo um pouco, e tudo no seu lugar. Não devia nada para as melhores casas do ramo, a não ser o endereço.

Faltava, porém, equipar a… “bike”. Nunca pensei que os ciclistas fossem tão anglófilos. O ciclismo sempre foi dominado por italianos, franceses e até espanhóis. Tempos de Lance Armstrong…? Who knows! Eu também não… Seja como for, precisava acrescentar um monte de coisa nela: começando pelo bagageiro e os alforges até a “mesa” com guidão mais alto e os porta-caramanholas. Curioso ou curiosa? Mesa é o suporte do guidão e caramanholas são aquelas garrafas com água. Um ciclista precisa beber meio litro d’água por hora. Existem até mochilas para instalar um bebedouro nas costas, mas os viajantes devem evitar carregar qualquer excesso de peso no corpo.

Shopping JK e o o lixo. Quase uma instalação de Antony Gormley

A modesta – modesta? – bicicletaria de Aleksandro não tinha esses apetrechos. Ao contrário de meu amigo belga e milhares de turistas que rodam o mundo pedalando em cima de duas rodas, o cicloturismo ainda é incipiente no Brasil. Os clientes de Aleksandro são velocistas e montanhistas tão insistentes e pobres quanto nossos melhores atletas olímpicos. E, principalmente, paraolímpicos. Mesmo assim ele tinha a solução pra isso também: disse para eu procurar a loja do seu Eduardo Puertollano, no Tremembé. Aos pés da serra da Cantareira, é lá que começam as montanhas de São Paulo. Puertollano é uruguaio, aquele país vizinho cuja grama está ficando cada vez mais verde que a nossa. Ele está no negócio há 48 anos. Conta que o ciclismo já teve vários booms anteriores no Brasil, todos ligados ao lançamento de novos produtos: Caloi dobrável, Caloi 10, depois as mountain bikes. É a primeira vez que a febre não foi provocada pelas bicicletas, mas pelos ciclistas.

Equipamento em mãos, era hora de montar no selim e girar os pedais. Fui até a avenida Sumaré e entrei na ciclovia que existe lá. Ciclovia é até um eufemismo, talvez calçadão fosse mais adequado, pois há mais cães e pedestres sobre ela do que ciclistas, que precisam tocar a campainha, pedir licença para passar  e tomar muito cuidado para não atropelar alguém. Mas nem isso adiantou: ao tocar a campainha para alertar um pedestre da minha aproximação pelas costas dele, fui acusado de desrespeito à cidadania. Tentei explicar que aquilo era uma ciclovia, em vão. Nem mesmo mostrando as placas e símbolos gravados no chão consegui convencê-lo. Percebi algum perigo caso insistisse mais e pedalei mais rápido.

Como todas as ciclovias paulistanas, a da avenida Sumaré também é curta e acaba em nada. Dali pra frente é a lei da selva, você e os carros. As calçadas não servem nem para os pedestres que podem subir degraus, para os ciclistas são piores ainda. E, assim como os ciclistas odeiam os motoristas, os pedestres odeiam os ciclistas. Isso não muda quando pedestres e ciclistas assumem um volante e tornam-se motoristas. Na guerra do trânsito paulistano os soldados servem a todos os exércitos e atiram pra todo lado.

Prossegui da Sumaré através de Pinheiros, descendo até o fundo da Vila Madalena e subindo até a avenida Pedroso de Moraes. Lá começa outra ciclovia que segue até a Praça Panamericana. Como era um feriado, a ciclofaixa do alto de Pinheiros estava funcionando. Ciclofaixa é uma faixa de rolamento de veículos reservada para bicicletas em determinados dias e horários. Uma ciclovia improvisada, digamos, delimitada por milhares de cones vermelhos espalhados ao longo do percurso, sem obstáculos de separação, como uma calçada ou ciclovia de verdade. Guarde essa palavra: “improvisação’. Daqui pra frente, ela não vai nos abandonar.

A ciclofaixa do Alto de Pinheiros passa pela ponte da Cidade Universitária, que atravessa o rio Pinheiros e a ciclovia que o acompanha. Quem está na ciclofaixa e quer descer até a ciclovia, precisa atravessar a alça de acesso da marginal do Pinheiros à Cidade Univesitária, subir numa guia altíssima e invadir a calçada que, por estar sobre a ponte, é protegida do tráfego de veículos por um muro de concreto. Deu pra entender? Quer que eu desenhe? É melhor ver o mapa do local, com direito a foto do local mostrando como era a ciclovia antes de ser uma ciclovia… Em suma, o acesso a ela mais parece uma prova de obstáculos do que uma corrida contra o relógio.

Vencida essa barreira – com a permissão dos passageiros que entram e saem da Estação Cidade Universitária da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM pela mesma calçada – você já está no alto da rampa de aço que dá acesso à ciclovia debaixo da ponte. Respire forte e sinta o aroma de gás sulfrídrico que vai acompanhar o seu, nosso passeio daqui pra frente. Aproveite a visão aérea e admire a foz do córrego Pirajuçara, que nasce no Embu das Artes, atravessa o Butantã enterrado como um metrô de esgotos e desemboca bem ali. Há duas versões para o significado de Butantã: “terra dura” ou “lugar de vento forte”. Basta começar a pedalar e atolar por ali que você vai acreditar mais na segunda versão. Pirajuçara é uma referência a peixes e palmeiras, duas coisas que decididamente desapareceram dali.

O Sena paulistano espelha muitos palácios franceses e nenhuma Bastilha.

Pronto, já descemos a rampa e estamos, enfim, na famosa ciclovia do Rio Pinheiros. Uma pista asfaltada, pintada de vermelho, construída e mantida pela CPTM, confinada entre a ferrovia e o leito do rio, mas sem qualquer integração com o trem que estará sempre conosco, exceto nas tardes de sábado e nos domingos. Além dele, teremos a companhia constante das capivaras que brotam imundas do leito pantanoso do rio e dos passageiros que se acotovelam nas estações – uma após a outra – assistindo o nosso desfile olímpico enquanto esperam o próximo trem e mesmo durante a viagem.

Completam nossa companhia, além dos demais ciclistas, claro, os veículos dos serviços de manutenção da ferrovia – afinal, a “ciclovia” foi feita pra isso, lembra? – que são obrigados a circular em faixa exclusiva sinalizada no chão, em baixa velocidade e com os faróis acessos. A improvisação segue na nossa garupa.

Agora é só pedalar e curtir. Indo na direção de Jurubatuba (sul), em poucos minutos passamos a ponte da avenida Rebouças, o Jóquei Clube – na outra margem -, a ponte Cidade Jardim e chegamos à estação Vila Olímpia e à Estação Elevatória da Traição, batizada pelo córrego que ali se une ao rio. Não misture as estações: uma é uma parada do trem, a outra é uma bomba de sucção que faz o Pinheiros andar para trás. O curso do rio – afluente do Tietê – foi invertido no início do século passado para formar a represa Billings e gerar energia elétrica na Usina Henry Borden, lá embaixo da Serra do Mar, em Cubatão. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, o Ministério Público está exigindo que a Sabesp passe a tratar os esgotos lançados no rio, pois a poluição – como estamos observando no nosso passeio – é tanta que o bombeamento teve que ser reduzido, gerando ociosidade na usina e prejuízos financeiros ao estado – além do lixo acumulado e do mau cheiro que podemos ver e sentir.

Dali é possível avistar a fachada de dois templos paulistanos do consumo de luxo: o shopping JK Iguatemi e a loja Daslu. Algumas pedaladas adiante, contornando a estação de bombeamento e ultrapassando outra “estação” – de energia, da Eletropaulo – avista-se mais luxo na outra margem do rio: o shopping Cidade Jardim. Decididamente, parece que São Paulo, incapaz de limpar seu lixo, preferiu neutralizá-lo, misturando-o ao luxo. Esse é o climax do passeio: olhe à sua volta, admire a rede de alta tensão da Eletropaulo, uma bomba de esgotos, e as torres que se erguem sobre o shopping, imitando palácios franceses. Observe as capivaras, o maior dos roedores, ratos de 80 kg que brotam da lama imunda e imagine que os frequentadores dos templos de luxo e moradores daquelas torres podem ter pago até mais de dez milhões de reais por aquele mesmo panorama.

A próxima parada – e o próximo templo – é a ponte estaiada Otávio Frias de Oliveira, que liga a avenida Jornalista Roberto Marinho às duas margens do rio, o luxo e o lixo. Dali são geradas as imagens da cidade que assistimos todos os dias na TV. Esse é o fundo de tela que domina os principais jornais da televisão local. Mas não é isso que assistimos lá debaixo da ponte. Lá, deitados no chão sobre os alicerces de concreto e à sombra da torre gigantesca, o que se vê é o contraplano, a imagem da própria emissora, cercada de lixo e não só de luxo. Podemos continuar pedalando e chegar a Santo Amaro e ao autódromo de Interlagos, próximo ao extremo da nossa ciclovia. Ali não há templos de luxo, apenas um lixão, que não se vê na tela da Fórmula 1. Ali a ciclovia acaba e começa a periferia da periferia, que leva os ciclistas e o esgoto morro abaixo, passando pela represa Billings até Cubatão e, de lá, até as praias onde todos nós, ciclistas ou não, mergulhamos.

Expulsamos o rio para longe, mas vivemos imersos nele.

 Fotos de: Martim Passos www.flickr.com/photos/martimpassos

Jura Passos é jornalista. Formou-se na Escola de Comunicações e Artes da USP e fez especialização em comunicação e políticas públicas no Hubert H. Humphrey Institute of Public Affairs da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. É um eterno aprendiz de capoeira, samba e maracatu e adora viajar de bicicleta por ai, menos em São Paulo.