Por que sou favorável à lei que tipifica os crimes de abuso de autoridade. Por Afrânio Silva Jardim

Atualizado em 28 de agosto de 2019 às 10:32
Justiça. Foto: Wikimedia Commons

Publicado originalmente no Empório do Direito

POR AFRÂNIO SILVA JARDIM, professor associado de Direito Processual Penal da UERJ, mestre e livre-docente em Direito Processual, Procurador de Justiça (aposentado)

Preliminarmente, importa ressaltar que a sugestão é chamar o novo diploma legislativo de “LEI CANCELLIER”, em homenagem ao reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que se suicidou em lugar público, após ter sido humilhado por absurda prisão temporária e revistas vexatórias.

Examinei o texto que foi aprovado pelo Congresso Nacional e está dependendo de sanção (ou vetos) do nosso tenebroso presidente da república.

Fiquei surpreso. Não esperava, mas o texto é muito bom. Gostei da forma e do conteúdo. Lógico que sempre haverá críticas pontuais, mas o projeto merece poucas ressalvas, nada obstante o meu espírito crítico.

Democratas não precisam ter medo da futura lei de Abuso de Autoridade. Ela se nos afigura bastante razoável e tem escopo louvável, segundo os postulados do Estado de Direito.

Não acho desejável qualquer veto presidencial ao projeto. Entretanto, o autoritário senhor Sérgio Moro sugere cerca 9 (nove) vetos, conforme vem sendo noticiado pela imprensa. Sintomático …

Alguns reparos, que aponto na reflexão abaixo, são perfeitamente contornados por corretas interpretações das futuras doutrina e jurisprudência. Toda norma jurídica, para sua aplicação, depende de interpretação, atividade essencialmente subjetiva.

Aprovo a seleção das condutas abusivas que nele são tipificadas como crimes. Não vejo muitos problemas na redação destas normas penais incriminadoras, sendo elas de fácil interpretação e aplicação aos casos concretos.

Não há “normas penais em branco” e tipos não são excessivamente abertos. Os elementos normativos do tipo sempre exigirão um cuidado interpretativo maior, como já ocorre nos demais diplomas legais que tipificam condutas como criminosas. Nada de novo …

Aliás, o primeiro artigo de projeto tem grande utilidade para o intérprete e para o aplicador deste futuro diploma legal.

O parágrafo primeiro do artigo primeiro do projeto em análise pode ser entendido como uma espécie de norma de intepretação autêntica, na medida em que esclarece que a tipicidade das condutas elencadas pressupõe sempre um “especial fim de agir”, que a antiga doutrina chamava de “dolo específico”.

Com o mesmo escopo de auxiliar o aplicador da futura lei, no parágrafo segundo deste mesmo artigo, o legislador dispõe que a “divergência na interpretação da lei ou na apreciação dos fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”.

Assim, não configurará crime uma acusação penal com base em prova que possa ser reputada como frágil e insuficiente. Só haverá abuso de autoridade se a acusação não se lastrear em prova alguma, conforme vamos salientar mais adiante.

Com relação à persecução penal em juízo, o artigo terceiro em nada inova ao que já dispõe o Código de Processo Penal. A ação é pública incondicionada e a ação penal subsidiária pressupõe o esgotamento do prazo de que dispõe o Ministério Público para o oferecimento de sua denúncia.

Perfeitos os artigos quarto e quinto do projeto ora analisado. Tratam eles dos efeitos da condenação e das penas restritivas de direito.

Vamos às poucas ressalvas que faço ao projeto. Tudo o mais merece aprovação ou mesmo criterioso elogio.

Em verdade, no projeto encontramos algumas expressões relativamente genéricas, como a expressão “prazo razoável” do artigo 9. Isto não é desejável, mas a jurisprudência saberá consolidar um entendimento uniforme.

Como advertimos acima, muitos tipos penais contém elementos normativos, exigindo interpretações mais atentas e cuidadosas, tendo em vista o salutar e constitucional princípio da reserva legal.

O artigo 10 parece permitir genericamente a condução coercitiva do investigado. Ora, se ele tem direito ao silêncio, não faz sentido obrigá-lo a comparecer perante a autoridade policial para dizer que vai ficar calado !!! Entendo só caber tal condução forçada para outro ato investigatório, como uma perícia ou uma tentativa de reconhecimento. Mesmo assim, só se for desatendida uma prévia intimação, conforme prevê o projeto.

Também acho que a redação do artigo 14 poderia ser mais precisa. Este dispositivo veda fotografar ou filmar, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de preso, indiciado, etc. O que pode salvar esta regra muito limitadora da atividade investigatória do Estado é o especial fim de agir (dolo específico) constante na parte final do dispositivo: “com o intuito de expor a pessoa a vexame ou execração pública”.

Julgo equivocado o inc. III do artigo 22 do projeto, ao permitir o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar até as 21 horas. A Constituição Federal não permite a entrada em residências contra a vontade do morador, salvo para prisão em flagrante, caso de desastre ou para prestar socorro. Vale dizer, à noite, nem com mandado judicial se pode violar o descanso domiciliar. O Código de Proc. Penal tem regra disciplinando isto (artigo 293).

Não está claro que sindicância ou investigação preliminar sumárias dispensariam “qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa para ser instauradas (ar.27, parágrafo único).

Finalmente, merece censura o artigo 30 do projeto quando se utiliza de uma expressão não muito precisa para legitimar a instauração de uma persecução penal, civil ou administrativa. O legislador usou a dúbia expressão “justa causa fundamentada”.

O atual artigo 395 do Cod. Proc. Penal, ao colocar a justa causa no seu inc. III, torna claro que a justa causa não mais é uma condição da ação, que é referida em seu inc. II.

Assim, melhor seria exigir a demonstração de um “suporte probatório mínimo” daquilo que vier narrado na peça acusatória. Já escrevi sobre isto (Site Empório do Direito).

Vale esclarecer que neste primeiro momento processual, mero juízo da admissibilidade de ação penal condenatório, descabe valorar a prova do inquérito ou das peças de informação. Cabe tão somente constatar ou não a sua existência.

Vejam que só destaquei estes defeitos de maior relevância em um universo de 45 artigos do projeto. Mesmo assim, tais defeitos são facilmente contornados pela jurisprudência dos nossos tribunais, com o aconselhamento da melhor doutrina.

A tipificação do uso abusivo das algemas (artigo 17 do projeto) não difere muito do disposto na Súmula Vinculante número 11 do Supremo Tribunal Federal. Desta forma, nada mudará se realmente vier o prometido veto presidencial.

Importante notar, ainda, que todas as penas privativas de liberdade (detenção) são igual ou inferior a 4 (quatro) anos. Assim, poderá o condenado cumprir tal pena em regime aberto, bem como não será permitida a prisão preventiva, tendo em vista regra expressa do Código de Processo Penal.

Ademais, todas as penas previstas no projeto em exame admitem a suspensão condicional do processo, consoante disposto na lei n.9.099/95, aplicável à futura lei por disposição nela expressa.

No mais, digo e afirmo que o novo texto vai qualificar e reforçar o nosso combalido Estado de Direito Democrático. Será um texto normativo que vai nos orgulhar perante a comunidade jurídica internacional.

Há muito tempo o nosso Congresso Nacional não produz um texto legislativo sobre matéria penal e processual penal tão correto e bem elaborado como este.

Concordo com a tipificação penal das diversas condutas constantes do projeto.

Não há o que temer, basta que as autoridades públicas atuem em conformidade com as exigências próprias de um pais que respeita a dignidade das pessoas e os valores fundantes de uma ordem jurídica justa, equilibrada e protetora dos valores cunhados pelo nosso processo civilizatório. Como costumo dizer, não á valioso punir a qualquer preço !!!

Mesmo os punitivistas não serão punidos se forem razoáveis na sua sanha persecutória. Basta que cumpram a lei para poderem punir os que não cumprem a lei.

Atuei 31 anos no Ministério Público do E.R.J. e jamais pratiquei qualquer das condutas tipificadas no projeto. Fui Promotor e Procurador de Justiça e nunca precisei “arranhar” a ordem jurídica para bem desempenhar amplamente as minhas funções persecutórias. Não há o que temer. Há de respeitar os princípios que caracterizam o chamado “devido processo legal”.

Democratas estão felizes com o novo diploma legislativo. Os autoritários e corporativistas, nem tanto…