Por um outro Israel. Por Edward Magro

Atualizado em 16 de outubro de 2025 às 15:11
O primeiro-ministro da Israel, Benjamin Netanyahu. Foto: Kevin Lamarque/Reuters

Em Roma, ao ser questionado sobre as relações do Brasil com Israel, o presidente Lula respondeu com a serenidade habitual: “O Brasil não tem problema com Israel; o Brasil tem problema é com Netanyahu. A hora em que Netanyahu não estiver mais no governo, não haverá nenhum problema entre o Brasil e Israel, que sempre tiveram uma relação muito boa”.

A resposta, cortês e diplomática, parece simples. Mas há algo nela que me inquieta. Talvez o impasse não se limite a um nome, nem a um governo. Meu desconforto, ou minha angústia, habita o segundo período da frase: “A hora em que Netanyahu não estiver mais no governo, não haverá nenhum problema entre o Brasil e Israel, que sempre tiveram uma relação muito boa.”

É um desconforto profundo, pois ali se oculta uma condescendência histórica, uma espécie de aceitação tácita diante de um Estado que, desde a origem, fez da exclusão o alicerce de sua existência.

Netanyahu nasceu em Tel Aviv; Israel Katz, em Ashkelon; Ben-Gvir, em Mevaseret Zion. Esses assassinos não surgiram por geração espontânea. Não são cactos que brotaram em solo fértil. Não são vermes que apareceram em ambiente estéril. Não são brutos que emergiram de uma sociedade pacífica. Não são criminosos que despontaram, por acaso, em um mundo de bondades. São frutos maduros de um longo semear, de um Estado que os cultivou por convicção.

É com um Estado capaz de gerar um governo assim que o Brasil não teria problema algum? Dizer que bastaria a troca de um governante para restaurar a harmonia é um consolo ilusório. As raízes do problema não se prendem a um homem, mas a um desejo de dominação, lógica que se repete, obstinada, geração após geração.

Não é tempo de arranjos, nem hora de permitir que a virtude da prudência histórica se converta em conivência. Quando o horror se normaliza e o sofrimento é reduzido a dado estatístico, a moderação é covardia. Imaginar que o fim de Netanyahu bastaria para restaurar a normalidade é ignorar o que há de estrutural na tragédia.

O Estado de Israel não se desviou de um caminho virtuoso; foi fundado sobre um princípio de exclusão. Não é um acidente da história: é o seu desígnio. Foi pensado, concebido e estruturado pelo sionismo europeu para ser colonialista e hegemônico.

Israel nasceu sob o signo da ocupação. Sua criação foi apresentada ao mundo como um refúgio, mas realizada, na prática, como um projeto de dominação. O sionismo político, em sua forma estatal, assumiu desde o início um caráter expansionista. Sob o argumento da segurança, adotou políticas de ocupação e expulsão que transformaram a vida palestina em exílio permanente. Invadiu e ocupou territórios da Jordânia, da Síria, do Egito e do Líbano em sua ânsia de expansão.

As fronteiras de 1948 não marcaram o início de uma convivência, mas o ponto inaugural de uma marcha contínua de invasões, anexações, expropriações e muros. Muitos muros. Nesse sentido, Netanyahu não é exceção; é continuidade. É a própria regra que o Estado de Israel produziu e aperfeiçoou.

A violência israelense, evidenciada até ontem no genocídio em Gaza, não é uma reação ocasional. É prática habitual. É prática habitual. Desde os atentados anteriores à sua fundação, como o do Hotel King David, em 1946, ou o primeiro massacre estatal no campo de refugiados de Al-Bureij, Israel construiu uma doutrina baseada no terror como instrumento de política.

Soldado israelense prende menino palestino na Cisjordânia. Foto: Abbas Momani/AFP

Menachem Begin, Yitzhak Shamir e Ariel Sharon atuaram como terroristas, assassinaram pessoas e, como prêmio, foram elevados ao posto de primeiro-ministro. David Ben-Gurion, Golda Meir e Ehud Olmert não participaram diretamente de atentados, mas têm as mãos com tanto ou mais sangue que os próprios terroristas ao tomarem decisões militares igualmente criminosas durante seus mandatos.

Netanyahu pertence a essa linhagem; é parte do mesmo rio de sangue, caudaloso e ininterrupto, gerado e abastecido pelo terrorismo de Estado israelense. O atual governo apenas herdou e nazistificou essa lógica. O nazissionismo não é novidade, é simplismente mais do mesmo.

Israel, há muito, rompeu o pacto civilizatório. Desafia as resoluções da ONU, ocupa territórios em flagrante ilegalidade, pratica terrorismo de Estado. Faz do direito internacional uma ficção e da impunidade um hábito. No cenário global, comporta-se como um Estado pirata: saqueia terras, manipula alianças e recusa qualquer forma de responsabilidade. Não há ética possível em uma convivência que aceite esse padrão de conduta como normal.

A boa nova é que há sinais de despertar. Nas últimas semanas, nações europeias, velhos aliados-reféns de Israel, reconheceram oficialmente o Estado Palestino. É um gesto tardio, mas necessário, o reconhecimento mínimo da dignidade humana negada por décadas.

Esse movimento indica que a consciência internacional começa, enfim, a compreender que não haverá paz enquanto um dos lados viver sob o jugo da ocupação. Mas esse passo, para ser efetivo, precisa ser seguido por outro, mais profundo: o de exigir a reforma estrutural do próprio Estado de Israel.

Não se trata de negar o direito de existência de Israel, e sim de afirmar que sua atual forma de existência nega o direito de todos os demais. A paz regional só será possível quando Israel deixar de implementar seu projeto colonial, quando abandonar a supremacia como fundamento, quando o seu próprio povo compreender que a segurança verdadeira nasce da justiça e não do medo.

É por isso que o Brasil e o mundo precisam ter sérios problemas com Israel. Não com os israelenses, mas com o Estado que neles molda a ideologia da exclusão e da morte. O dever ético das nações é recusar a normalidade diante do genocídio, mas também diante da expropriação continuada. O silêncio não é resposta. É preciso que Israel seja desmontado em suas bases coloniais, para que outro Israel possa nascer. Um Estado capaz de coexistir e não de subjugar.

Israel precisa de paz. A Palestina precisa de paz. O Oriente Médio precisa de paz.

E o mundo precisa se libertar da sombra nazissionista que desumaniza a todos nós.

Nenhuma forma de paz será possível enquanto o atual Estado de Israel persistir em sua essência racista e expansionista.

A paz virá quando o próprio Israel se reconhecer como parte da dor que espalhou.

Haverá paz quando um outro Israel renascer em bases humanas. Até lá, a humanidade não pode aceitar sua barbárie como destino.