Portugal nega luto ao principal líder da Revolução dos Cravos. Por Geraldo Seabra

Atualizado em 28 de julho de 2021 às 22:04
Otelo Saraiva de Carvalho

Por Geraldo Seabra

Em um mau cheiroso acordo entre o primeiro-ministro socialista António Costa e o presidente da República, o conservador Marcelo Rebelo de Sousa, Portugal negou luto à memória do tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho, o principal líder da Revolução dos Cravos, o movimento militar que eclodiu na madrugada de 25 de abril de 1974 para libertar o país da ditadura do Estado Novo que há mais de 40 anos fazia da nação portuguesa um estado policial que perseguia, torturava e eliminava opositores do regime fundado por Oliveira Salazar e encerrar a Guerra Colonial.

António Costa justificou a negativa da homenagem pelo fato de não ter sido decretado luto na morte de outros militares que tiveram atuação proeminente no movimento que derrubou a ditadura salazarista, como os também capitães de abril Ernesto Melo Antunes e Salgueiro Maia. Mas Otelo Saraiva de Carvalho, morto no domingo 25 no Hospital Militar de Lisboa, aos 84 anos, cujo corpo foi cremado nesta quarta-feira, mais que seus colegas de farda, foi o líder maior da Revolução dos Cravos, a qual sem ele não teria acontecido.

“É cedo para a história o apreciar com a devida distância”, desculpou-se o presidente em nota divulgada no site do Palácio de Belém, sede do governo português.

“No entanto, parece inquestionável a importância capital que teve no 25 de Abril, o símbolo que construiu de uma figura político-militar durante a revolução que fica na memória de muitos portugueses associado a lances controversos no início da nossa democracia, e que suscitou paixões, tal como rejeições”, concluiu o presidente em sua breve manifestação.

No regime português, a decretação de luto nacional é proposta pelo governo, no caso o primeiro-ministro, e sancionada pelo presidente da República. Mas ao negarem esse ritual para a homenagem a Otelo, na verdade o governo de António Costa e o presidente Marcelo Rebelo de Sousa evitaram dar aval à figura histórica mas igualmente polêmica do comandante da Revolução dos Cravos.

Com efeito, Otelo Saraiva de Carvalho foi uma figura controversa. Derrubou a ditadura salazarista em abril namorando com a social-democracia européia, e já em junho depois de uma visita a Cuba voltou a Portugal com maior simpatia à esquerda. Na primeira eleição livre em quase meio século, candidato a presidente da República, ele ficou em segundo lugar com quase 17% dos votos. Na eleição seguinte, o apoio de pouco mais de 1% do eleitorado o afastaria definitivamente da política.

Mais tarde Otelo teve seu nome associado aos Movimentos Populares que numa série de ações terroristas entre 1980 e 1987 foram responsáveis pela morte de 17 pessoas. Em junho de 1984, o ex-todo poderoso chefe da Revolução dos Cravos foi condenado a 15 anos de prisão e pagou cinco anos de prisão preventiva. Em 1986 foi anistiado pelo presidente Mário Soares, o mesmo que, em abril de 2009, promoveu Otelo ao posto de coronel.

O pedido de luto nacional por Otelo Saraiva de Carvalho foi reclamado aos gritos por cerca de 200 pessoas na longa fila formada nas imediações da igreja da Academia Militar de Lisboa para o último adeus ao líder da Revolução dos Cravos. A cena se repetiu quando o corpo de Otelo deixou a igreja para ser cremado em Alcabideche, em Cascais, quando também era entoada “Grândola, Vila Morena”, a música que serviu de senha para o início da revolução, na madrugada de 25 de abril de 1974.

A deputada Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, partido que parece um PSOL português, condenou a ausência do luto por Otelo, “um libertador” do país.

“Otelo Saraiva de Carvalho foi um dos obreiros do 25 de Abril, foi o estratega da operação militar que permitiu o 25 de Abril, que pôs fim ao Estado Novo, pôs fim à guerra, pôs fim ao colonialismo e abriu a porta da esperança da democracia, da liberdade em Portugal. Hoje Portugal está de luto, lamentavelmente o Governo e o Presidente da República não o entenderam, mas Portugal está de luto porque como muito bem disse [o ex-Presidente da República] Ramalho Eanes a pátria deve-lhe a liberdade, a democracia e isso ninguém pode recusar ou negar”, afirmou Catarina Martins.

“O facto é que o país está de luto porque perdeu um libertador, um dos homens que nos trouxe a liberdade e a democracia e digam o que disserem o Governo, o Presidente da República, isso ninguém pode negar e por isso Portugal está de luto porque esta é seguramente uma pátria que reconhece o valor daqueles que permitem a liberdade e a democracia”, acrescentou.

Nascido em 31 de Agosto de 1936 em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho teve uma carreira militar desde os anos 1960, fez uma comissão durante a guerra colonial na Guiné-Bissau, onde se cruzou com o general António de Spínola, até ao pós-25 de Abril de 1974.

No Movimento das Forças Armadas (MFA), que derrubou a ditadura de Salazar e Caetano, foi ele o encarregado de elaborar o plano de operações militares e, daí, ser conhecido como estratego do 25 de Abril.

Depois do 25 de Abril, foi comandante do Copcon, o Comando Operacional do Continente, durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC), surgindo associado à chamada esquerda militar, mais radical, e foi candidato presidencial em 1976.