Prêmio Camões: Chico é um lembrete vital de que o Brasil não é do Véio da Havan. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 22 de maio de 2019 às 16:46
Chico
Ele

Chico Buarque de Hollanda é o ganhador do Prêmio Camões, o principal laurel da língua portuguesa.

Foi eleito por unanimidade e vai receber 100 mil euros.

“Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar”, disse ele em nota lacônica enviada por sua assessoria de imprensa.

A escolha é pelo conjunto da obra e o último brasileiro eleito, como lembrou Chico, foi Raduan, de “Lavoura Arcaica”, em 2016.

O júri justificou sua escolha pela “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”.

Ressaltaram seu “caráter multifacetado”: poesia, teatro e romance.

“Seu trabalho atravessou fronteiras e mantém-se como uma referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo”, referem os jurados.

Chico é o primeiro da lista que tem a música popular como seu veículo principal.

“A música ‘Construção’, por exemplo, é um poema até raro de se fazer”, afirma um membro do júri, o escritor Antonio Cicero (que assina, aliás, a belíssima “Fullgas” com a irmã Marina).

“Seria uma tolice pretender que a letra de música [não seja vista] como grande poema”.

Essa falsa questão já havia sido encerrada com o Nobel de Bob Dylan, outro gênio da geração de Chico que se expressou e fez sucesso através das canções.

Se você e eu nos pusermos aqui a citar versos sublimes de Chico só vamos parar amanhã.

É certo que os anos mais produtivos ficaram para trás, mas é injusto e absurdo exigir qualquer coisa a mais do sujeito que compôs “Com Açucar, com Afeto”, “Bárbara”, “Apesar de Você”, “Cálice”, “Bastidores”, “Eu Te amo” etc etc etc.

(A melhor intérprete dele em todos os tempos é minha irmã Mari, que cantava para nosso pai Emir. Ainda canta, mesmo com ele morto ou por isso mesmo. Um dia conto direito).

Chico é o retrato de um Brasil que parece utópico, um mundo paralelo onde a burrice não era cultivada e glorificada, onde o ódio não era o idioma corrente, onde se podia conversar, inclusive, sobre política com adversários sem a sombra de um fuzil.

Ouvi-lo é um bálsamo, ser seu contemporâneo um privilégio.

A arte como fuga dessa miséria cotidiana, não apenas a bolsonarista, mas a que transcende a realidade.

Meu verso preferido, hoje, é aquele que diz que “te encontro, com certeza, talvez no tempo da delicadeza”.

Que a gente se encontre, novamente, no tempo da delicadeza, se é que ele existiu, se é que existirá no Brasil.

Kiko Nogueira
Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.