Publicado no Conjur.
POR LENIO STRECK, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
Este texto é singelo. E breve. Quero apenas chamar a atenção sobre um dispositivo do Código de Ética da Magistratura brasileira, vigente e válido desde 2008, o artigo 12:
Art. 12. Cumpre ao magistrado, na sua relação com os meios de comunicação social, comportar-se de forma prudente e equitativa, e cuidar especialmente:
I – para que não sejam prejudicados direitos e interesses legítimos de partes e seus procuradores;
II – de abster-se de emitir opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos, sentenças ou acórdãos, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos, doutrinária ou no exercício do magistério.
Simples assim. A lei (Código de Ética) parece clara, ao dizer que juiz só fala nos autos e, se for fora deles, tem de ter prudência e, fundamentalmente, um juiz não pode interferir na atuação de colega seu, exceto em respeito às normas legais. E não deve falar de autos alheios.
Pelo Código, um magistrado não deve falar de processo de outro(s) juiz(es), porque com isso poderia interferir, de algum modo, na atuação do colega (artigo 4º). As declarações aos meios de comunicação devem ser prudentes, para que não sejam prejudicados direitos de parte ou de seu procurador.
O que quero dizer com isso? Quero apenas — com toda a lhaneza e respeito jus acadêmico — chamar a atenção da sociedade e da comunidade jurídica para a entrevista do presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (jornal O Estado de S. Paulo de 6.8.2017) acerca da sentença do juiz Sergio Moro no caso Lula. Pendente de julgamento no tribunal presidido por Sua Excelência, a sentença de Moro foi considerada perfeita, verbis:
“é tecnicamente irrepreensível, fez exame minucioso e irretocável da prova dos autos e vai entrar para a história do Brasil”.
Supõe-se, por óbvio, pelo conteúdo da entrevista, que o presidente do TRF-4, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, tenha lido os autos e a própria sentença. Mas, não. Ele mesmo diz: “— não li a prova dos autos. Mas o juiz Moro fez exame minucioso e irretocável da prova dos autos”.
Ocorre que qualquer pessoa pode dizer que a sentença é perfeita, tecnicamente irrepreensível (ou que é imperfeita e tecnicamente repreensível). Menos o presidente do tribunal que vai julgar o feito, que, aliás, embora não vá julgar a apelação, se houver um incidente de inconstitucionalidade, poderá ter de julgar uma questão prejudicial, no âmbito do Órgão Especial. E outros juízes também não podem falar acerca da sentença. Não sou eu quem diz. É o Código de Ética.
“Tecnicamente irrepreensível” quer significar: impossível reformar a decisão porque, juridicamente, não tem qualquer furo. Sentença perfeita. Pergunto: e se seus colegas decidirem, na apelação, que a sentença não é perfeita?
O que restará para os advogados de defesa do réu? Difícil a vida de advogado. Alguém quer um argumento retórico mais eficiente e contundente do que as palavras do presidente da corte na qual será julgada a apelação? Se a moda pega, a partir de agora qualquer presidente de qualquer tribunal passará a se pronunciar sobre sentenças de juízes sob sua jurisdição.
Imaginemos o caso de um juiz ou procurador condenado pelo tribunal e o presidente do Superior Tribunal de Justiça vier a dizer: “— a decisão é perfeita. Tecnicamente irrepreensível”. O que o réu (juiz ou procurador) diria? E o que se passará no ânimo do réu? E o que seu advogado dirá?
Eis o busílis da questão. Não quero criar polêmicas e nem colocar pelo em ovo. Minha crítica não é fulanizadora. É institucional e assim deve ser recebida. O presidente do TRF-4 é um jurista culto. Sua competência pode ser vista pelos seus votos e pelas citações de obras de doutrinadores em várias línguas. Só que ele, quando toma a palavra, possui uma fala institucional e institucionalizadora. É o presidente de um tribunal. Não pode falar por si. E, mesmo por si, ainda assim estará falando de decisão ainda em trâmite. Como é o caso.
Aliás, manifestações prévias sobre decisões têm sido uma prática também de outros juízos do país, em fóruns e tribunais. Falar fora dos autos tem sido uma constante. Esta crítica não se dirige ao eventual elogio pessoal dirigido pelo presidente ao juiz Sergio Moro. Afinal, é uma avaliação pessoal e subjetiva. Que respeito. A crítica, aqui, é dirigida à prévia apreciação do presidente de um Tribunal Federal acerca da decisão de um juiz (que, no caso, é Moro), sujeita à revisão desse tribunal. Para deixar bem claro e delimitar os campos discursivos.
Sei que é difícil e antipático, em um país em que as relações se dão por laços muito pessoais, criticar autoridades. O custo disso sempre é alto. Raimundo Faoro já disse de há muito como se dão as relações em um país como o nosso. Mas essas coisas devem ser ditas.
É nestas horas que tenho saudades de Paulo Brossard, ministro pelo qual, ao que li da entrevista, o presidente tinha imenso apreço. E eu também. Às vezes, de tão formal e cuidadoso, Brossard era irritante. Até para responder refletia profundamente. Talvez para errar menos. Ou acertar mais. Mas jamais um juiz como Brossard diria, mormente acerca de uma sentença que condenou um ex-presidente da República, antes que a instância superior reexaminasse a sentença, que esta era tecnicamente irrepreensível (sic). Brossard não correria esse risco. Mormente se a sentença fosse da lavra de um juiz polêmico como Sergio Moro, que, de mais de 200 laudas, ocupa um terço para se defender de críticas.
Era só isso que eu queria dizer. Escrevemos e ensinamos que julgamento só acaba com o trânsito em julgado. E que deve haver imparcialidade. Será?
Enfim, era só isso.