Prisão domiciliar a Lula resolve um problema da Justiça, não do ex-presidente. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 3 de abril de 2019 às 7:56
Lula. Foto: Miguel Schincariol | AFPla

O movimento para conceder prisão domiciliar a Lula, que ganhou as páginas da Folha de S. Paulo e de O Globo por meio de artigo de Elio Gaspari, resolve um problema da Justiça, não do ex-presidente.

Lula não pediu nem pedirá prisão domiciliar, porque trabalha na dimensão da história: quer a sua declaração de inocência.

“Não negocio a minha dignidade nem mesmo em troca da liberdade”, disse. Não trocaria também pelo relativo conforto de permanecer em casa, em condições que se assemelhariam às da cadeia.

A uma pessoa que perguntou se aceitaria prisão domiciliar, ele disse que quer deixar a Polícia Federal, sim, mas não para usar tornozeleira como se fosse um pombo correio monitorado.

“Eu quero sair, sim, mas para viajar pelo Brasil e levar de novo a mensagem da esperança: o brasileiro precisa de alguém que lhe diga da grandeza deste país, de lembrar da sua própria força e que ele precisa voltar acreditar mais em si mesmo”, afirmou Lula a uma pessoa que o visitou recentemente.

Enquanto outros presos da Lava Jato, como Antonio Palocci, se submeteram à vontade de seus acusadores, Lula resiste e se mantém ativo na leitura dos textos que lhe são entregues, na orientação politica para seus partidários e amigos.

Recentemente, ele recebeu de presente um DVD com o documentário sobre um jogo histórico da Champions League, campeonato de que ele gosta muito.

Algumas semanas depois, quem deu o presente quis saber se ele havia assistido ao vídeo. “Tenho trabalhado muito e não tive tempo para ver o DVD”, disse.

Lula se mantém muito ativo através de comunicações por cartas e bilhetes. Desde que foi preso, há quase um ano, todos os dias ele passa alguma orientação.

Demonstra incômodo particularmente com a situação da Petrobras e de outras empresas brasileiras, que perderam espaço no mercado depois da Lava Jato.

Ele tem consciência de que quem mais perde com esse enfraquecimento das empresas brasileiras é o trabalhador, que precisa do emprego e, em razão disso, de corporações que tenham espaço no mercado.

Dia desses, pediu para um amigo que fizesse chegar a Sergio Gabrielle, ex-presidente da Petrobras, um pedido para que escrevesse sobre as crises políticas geradas a partir de interesses  econômicos contrariados na empresa de petróleo.

Demonstra também muita preocupação com o PT e sua estabilidade interna. Ele sabe que o partido é o principal instrumento de sua atuação política.

Demonstrou alegria com o resultado da eleição que deu ao partido a maior bancada na Câmara dos Deputados.

Enquanto outros sofriam com a derrota de Haddad, como se olhassem para um corpo que está com água pela metade e dissessem “o corpo está quase vazio”, Lula enxergava o mesmo corpo por outra perspectiva: “Está meio cheio”.

É que, para Lula, enquanto os demais partidos tradicionais foram praticamente devastados pelas urnas, o PT se manteve forte, apesar de ser o alvo principal do ataque midiático.

Sabe que, com esse resultado, o partido se mantém vivo para propor e executar transformações no país.

Para que isso aconteça, cuida, da maneira que pode, de pequenos detalhes da atuação do PT. Quando escreveu a carta em que pedia votos a Fernando Haddad, determinou que o texto fosse lido por Luiz Eduardo Greenhalgh, seu velho amigo, a quem chama pelo apelido de “Mococa”.

No PT, havia articulação para que outra pessoa lesse a carta, um governador ou dirigente do partido — o próprio Greenhalgh não queria.

Lula escreveu um bilhete e pediu que, fora da prisão, alguém fotografasse e mandasse para Gleisi Hoffmann, que estava em reunião no partido, para que ela mostrasse aos demais dirigentes partidários.

“É para minha carta ser lida pelo Luiz Eduardo Greenhalgh”, escreveu.

Quem recebeu entendeu que Lula queria fazer do ato uma lembrança dos tempos em que esteve preso, na ditadura militar, e Greenhalgh aparecia nas TVs, como seu advogado, para falar a respeito do cárcere.

Os eleitores mais velhos entenderiam.

Hoje Lula sabe que poderá haver disputa interna nas próximas eleições para presidente do PT, mas nem por isso deixa de se empenhar para garantir apoio à recondução de Gleisi Hoffmann.

Refutou a ideia de fazer de Fernando Haddad o próximo presidente do partido. Para Lula, o comportamento militante de Gleisi ajuda o PT nessa hora, em que necessita de unidade.

Já Haddad, na visão dele, pode ter o papel de embaixador junto à sociedade. “É burrice manter o Haddad cuidando do PT, voltado para dentro, se ele pode falar para fora, levando nossa mensagem, a mensagem do partido, para a sociedade”, explicou.

Durante o ano em que esteve preso, Lula só interrompeu as comunicações em dois períodos. O primeiro foi nos dias que se seguiram à eleição de Bolsonaro.

“Ele sabia que isso poderia ocorrer, mas ficou impactado com a repercussão na vida das pessoas. Fez pausa de alguns dias. Parecia que estava refletindo”, afirmou um interlocutor.

Logo depois, cessado o período de reflexão, pediu que todos se empenhassem na resistência, e foi um dos primeiros a interpretar a eleição de Bolsonaro como mais uma fase de um movimento maior, que visa tirar direitos da população, sobretudo trabalhistas.

O outro período de silêncio foi após a morte de seu neto, Arthur. Era Carnaval e ele teve direito de receber uma visita na segunda-feira.

Era do advogado Luiz Eduardo Greehalgh. Os dois almoçaram e depois lavaram os pratos na pia do pequeno banheiro da cela.

Houve silêncio, e lágrimas.

Difícil encontrar alguém que não sucumba diante da realidade que Lula vive na prisão. Naturalmente, ele quer sair.

Mas não a qualquer preço.

Quem vê a situação de fora enxerga a prisão domiciliar como uma semi-justiça. É melhor ficar em casa no que na PF.

Naturalmente, é muito melhor.

Mas o que Lula parece ver os outros não conseguem enxergar.

Lula preso, alvo de uma sentença que não descreve conduta criminosa nem apresenta prova alguma de crime, é a denúncia de que as instituições brasileiras estão com uma ferida aberta.

E é a constatação desse mal que pode levar a uma mudança mais profunda na situação política. Uma hora, as pessoas em geral se perguntarão: “Mas exatamente por que Lula está preso?”

Quando se conscientizarem da resposta, o Brasil pode, efetivamente, tomar um novo rumo. A prisão de Lula, em outras palavras, é política, em todos os sentidos.