
Por Rodrigo Chagas, em Brasil de Fato
Fundos estrangeiros avançam sobre a água no Brasil amparados por incentivos fiscais e crédito público. Um estudo do Centro Internacional de Pesquisa sobre Responsabilidade Corporativa e Tributária (Cictar) e do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente da Bahia (Sindae), divulgado nesta sexta-feira (12), mapeou que R$ 21,1 bilhões dos R$ 38,9 bilhões captados via debêntures incentivadas desde 2017 foram usados para pagar ou refinanciar outorgas de concessões, e não para obras.
Debêntures são títulos de dívida que empresas emitem para captar dinheiro de investidores e, em troca, pagam juros e devolvem o principal no vencimento. Ao menos cinco de cada 10 reais captados pelas empresas, por meio de títulos com incentivos públicos, não foram usados para melhorias do setor, mas para concentrar o controle do mercado.
“O incentivo virou motor de privatização”, resume a pesquisadora Livi Gerbase, do Cictar. O relatório registra que, a partir da Lei 14.801, de 2024, o benefício fiscal migrou do investidor para a empresa emissora, permitindo deduzir juros de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A partir dessa alteração legal, a empresa que toma o dinheiro no mercado pode descontar parte dos juros do imposto; isso vale para emissões até 2030 e cobre gastos de até 5 anos atrás. Em outras palavras, se uma companhia emite um título em 2025, paga R$ 100 milhões/ano de juros e tem lucro, ela pode usar uma parte desses R$ 100 milhões para reduzir o IRPJ/CSLL a pagar.
O problema constatado pelo estudo O sequestro do financiamento do saneamento básico no Brasil é que o dinheiro captado não está sendo investido em melhorias no saneamento e abastecimento de água das cidades brasileiras. “O que a gente está mostrando é que isso tem sido utilizado para essas grandes empresas pagarem o valor das outorgas”, salienta Gerbase.
Enquanto isso, cada vez mais refém do mundo dos negócios, o país segue distante da universalização prometida pelo Marco Legal do Saneamento Básico, que completa 5 anos. Houve, em vez disso, retrocessos. O estudo Avanços do Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil de 2025, divulgado em agosto, mostrou que o acesso à água passou de 83,6% da população, em 2019, para 83,1%, em 2023 ─ uma queda de 0,5 ponto percentual. Já o tratamento de esgoto passou de 46,3% para 51,8%.
“No atual ritmo, só seria em 2070”, assinala a pesquisadora.
Para o dirigente Fernando Biron, do Sindae, trata-se de uma manobra com objetivo de “socializar o risco e privatizar o lucro”. Ele afirma que “as empresas pegam dinheiro público para comprar o que era público; quando a conta chega, vai para o consumidor e para o trabalhador”.
Biron defende um fundo nacional de saneamento e a liderança dos bancos públicos no crédito de longo prazo, e critica “PDVs [planos de demissão voluntária] pressionados, enxugamento de quadro e burnout” como efeitos recorrentes das privatizações.
“Se o governo quer universalizar, tem que blindar o incentivo contra uso em outorgas”, reforça Livi Gerbase.
Caso BRK expõe limites do modelo
O caso BRK é o exemplo mais detalhado no estudo. Em 2020, a empresa venceu a concessão da Região Metropolitana de Maceió com outorga de R$ 2 bilhões. Para isso, captou R$ 3,75 bilhões em debêntures, sendo R$ 1,95 bilhão com incentivo fiscal. Segundo o relatório, uma parte relevante foi classificada como blue bond no mercado, mas utilizada para refinanciar a outorga e não para obras que beneficiem a população.
Blue bond (em tradução, título azul) é um tipo de debênture rotulada para financiar projetos ligados à água: tratamento de esgoto, redução de perdas na rede, despoluição de rios, proteção de mananciais, costas e oceanos, etc. O “azul” é só o rótulo temático: a empresa diz que o dinheiro será carimbado para metas ambientais de água e se compromete a publicar relatórios de alocação e, idealmente, de impacto.
Nos três primeiros anos de concessão, o Capex público identificado somou R$ 409 milhões (2020–2023). A companhia alega ter R$ 904 milhões investidos (2021–2025). Para cumprir o que foi acordado — R$ 2 bilhões em seis anos — teria de aportar cerca de R$ 1,1 bilhão apenas em 2026. “É o caso-limite do modelo: dívida alta, rolagem de passivos e juros comendo o caixa”, resume Biron.
Capex é a sigla que define no mundo dos negócios aqueles investimentos que permitem manter ou expandir a capacidade do serviço prestado no longo prazo, como obras, máquinas, instalações e redes.
O peso do serviço da dívida, em contrapartida, aparece nas demonstrações: em 2024, a BRK pagou R$ 1,139 bilhão em juros — 25% acima da folha de pessoal — e superior aos gastos com investimentos e com imposto de renda, com amortizações anuais relevantes ao menos até 2034.
Entre 2017 e 2024, a BRK emitiu R$ 12,2 bilhões em debêntures, das quais R$ 2,4 bilhões incentivadas. O estudo registra que os principais investidores são grandes fundos brasileiros e estrangeiros, e projeta milhões em pagamentos de juros nos próximos anos.
“Parece que tarifas mais altas cobradas dos consumidores estão alimentando esses pagamentos de juros”, diz o relatório.
Em paralelo, a tarifa média reportada pela BRK subiu 71,35% entre 2017 e 2024 (de R$ 3,70/m³ para R$ 6,34/m³), praticamente o dobro da inflação do período, segundo a própria empresa.
E enquanto pesa no bolso dos consumidores, a empresa tira do bolso dos trabalhadores, sempre que pode. “Para elevar o dividendo dos acionistas, a empresa enxuga o máximo possível”, explica Biron, que completa: “de norte a sul do país precarização e demissão é sinônimo justamente das privatizações”.
“Essas empresas não têm o compromisso social com seus trabalhadores. Elas têm compromisso com o seu lucro”, resume o sindicalista.
Sanções e controle estrangeiro
O estudo da Cictar e do Sindae também reúne denúncias e sanções registradas em outras regiões do país. Em Tocantins e em Blumenau (SC), foram abertas comissões parlamentares de inquérito para apurar falhas no serviço, como interrupções, qualidade da água e descumprimento de metas.
Em Blumenau, por exemplo, a prefeitura e a agência reguladora revisaram mudanças no contrato e chegaram a revogar um deles; a concessionária tentou derrubar a decisão na Justiça, mas o pedido de liminar foi negado. Além disso, o material reúne autos de infração e multas ambientais em diferentes cidades por problemas no tratamento de esgoto e lançamentos irregulares, que, somadas, chegam à casa das dezenas de milhões de reais.
O número de municípios atendidos por empresas privadas de saneamento cresceu 525% nos últimos cinco anos. “O setor está cada vez mais nas mãos de grandes grupos estrangeiros”, afirma Livi, citando o controle canadense da BRK e a presença de fundos globais em outras companhias.

Na avaliação dela, saneamento combina uma demanda fixa com a possibilidade de reajustes no valor do serviço, o que reduz risco e torna o negócio atraente. “Sem uma espécie de golden share ou salvaguardas, o país perde capacidade de orientar a expansão do saneamento conforme o interesse público.”
Em nota enviada ao Brasil de Fato, o BNDES afirma ter papel central no saneamento brasileiro, tanto como financiador quanto como estruturador de projetos. O banco destaca que busca estruturar concessões e parcerias público-privadas (PPPs) voltadas à universalização dos serviços, com prioridade para o investimento. Como financiador, diz atuar com todos os prestadores que apresentem projetos sustentáveis e garantias.
De 2008 a 2014, foi um dos principais financiadores do PAC, com clientes que incluem companhias estaduais (CESBs), empresas municipais e concessionárias privadas.
A instituição salienta que mais de 80% do crédito liberado se destina a obras voltadas à universalização dos serviços, enquanto menos de 20% têm outros usos, como o pagamento de outorgas. Nos projetos que combinam Capex e outorga, o BNDES diz priorizar os investimentos em infraestrutura e acompanhar a execução física e financeira para garantir que os recursos cheguem à população.
Sobre debêntures, o banco afirma que seu objetivo é atrair recursos do mercado de capitais para a expansão do setor, considerando a necessidade de investir entre R$ 500 bilhões e R$ 900 bilhões até 2033.
O BNDES ressalta que não define critérios dos leilões – essa responsabilidade cabe a estados e municípios – e que os usos dos recursos seguem cláusulas contratuais alinhadas à estratégia setorial. No caso de debêntures rotuladas como verdes ou azuis, a instituição exige relatórios de certificação independentes.
BRK rebate estudo, que cobra blindagem dos incentivos
Procurada nos autos do estudo, a BRK nega as conclusões. Em texto reproduzido no relatório, a empresa afirma que “os municípios atendidos pela BRK estão entre os mais bem avaliados do país”, citando ranking Trata Brasil, e diz que na RMM Maceió “já foram investidos mais de R$ 770 milhões”, com “cronograma robusto de obras em andamento”. A companhia sustenta que as debêntures são instrumento legítimo, previsto em lei e supervisionado pela CVM, e atribui o pico de juros à alta da Selic.
O Brasil de Fato também entrou em contato com a BRK com questionamentos sobre este tema, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.
O relatório recomenda que o governo proíba o uso de debêntures incentivadas para pagar ou refinanciar outorgas e que Caixa/FGTS e BNDES deixem de sustentar conglomerados privados com instrumentos de mercado sem adicionalidade, direcionando recursos diretamente para obras, com transparência e controle social.
“Se nada mudar, universalização vira promessa adiada”, diz Biron. Livi reforça: “É financiamento estável e de longo prazo — não marketing financeiro — que tira milhões da vala da desigualdade.”
Veja a íntegra da nota do BNDES enviada à reportagem
O BNDES tem de fato um papel central no saneamento do Brasil, tanto como financiador quanto como estruturador de projetos. Abaixo, está um gráfico com o investimento nacional, não só do BNDES, nos serviços de água e esgoto no Brasil, de 2000 a 2023 (preços constantes de 2023, deflacionados pelo IPCA), que é o último dado disponível no SNIS/Sinisa. A atuação do BNDES desde 2008 tem contribuído decisivamente para elevar os níveis de investimento.
Dados: SNIS/SINISA (ajustado pela inflação)
Isso ocorre porque, como estruturador de projetos, o BNDES busca sempre colocar de pé concessões e PPPs que visem a universalização dos serviços em suas áreas de atuação. A prioridade é sempre o investimento. E porque, como financiador, o BNDES opera com todos os prestadores que apresentem projetos sustentáveis e garantias. Por exemplo, de 2008 a 2014, BNDES foi um dos grandes financiadores do PAC. Entre seus clientes, há companhias estaduais de saneamentos (as CESBs), empresas municipais e concessionárias privadas.
Destaca-se ainda que mais de 80% das aprovações de crédito disponibilizadas pelo BNDES para financiamento ao setor de saneamento se direciona para obras que visam a universalização dos serviços, e menos de 20% tem outros usos, como o financiamento às outorgas, de tal sorte que o BNDES financiou menos de 1/5 do volume das outorgas pagas. Ainda sobre esse tema, é importante salientar que nos projetos que contêm investimentos em CAPEX e em outorga, o que se busca é fechar todo o funding necessário para o projeto, sobretudo para os investimentos em CAPEX, de modo que o BNDES não financia outorgas em detrimento do CAPEX; pelo contrário, ele foca seu apoio nos investimentos que visam a universalização.
Nas operações de crédito, o BNDES acompanha fisicamente e financeiramente o projeto e realiza as liberações de recursos pari passu à essa execução. Com isso, é possível garantir que os recursos aprovados e liberados pelo BNDES estão de fato chegando até a população.
Vale notar que apesar de o BNDES atuar como um dos principais estruturadores de concessões e PPPs em saneamento no país, quem define os critérios do leilão é o poder concedente (estados e municípios), não o Banco.
Sobre as debêntures, a atuação do BNDES por intermédio desse instrumento tem como principal objetivo atrair e atuar em conjunto com o mercado de capitais para financiar a expansão do setor. Com isso, consegue atrair bancos privados, organismos multilaterais, fundos de investimentos e mesmo pessoas físicas para fornecimento de funding para os projetos. Em um setor que precisa investir entre R$ 500 bilhões e R$ 900 bilhões até 2033 para a universalização, todos as fontes de recursos são necessárias.
Por fim, o BNDES tem em suas políticas operacionais a definição de usos dos recursos compatíveis com sua estratégia setorial, focando no investimento com geração de emprego e renda. Os usos dos recursos são objetos de cláusulas nos contratos e escrituras de instrumentos de dívida investidos ou financiados pelo BNDES. As debêntures rotuladas com verdes/azuis sempre devem ter um relatório gerado por empresa certificadora independente e disponibilizado aos detentores do instrumento de mercado.

Nota da BRK na íntegra
Este relatório distorce dados, apresenta informações desatualizadas sobre os investimentos realizados pela BRK e ignora a realidade de um setor regulado, com regras rígidas, supervisão contínua e metas estabelecidas pelo poder público. A BRK é administrada pela Brookfield, uma gestora responsável de negócios que investe e direciona seu foco para a prestação dos melhores níveis de serviço às partes interessadas do município, dentro de um setor regulado. Nos últimos três anos, a BRK investiu aproximadamente R$ 4 bilhões em obras estruturais, expandindo o acesso às redes de abastecimento de água e saneamento para mais de 564.000 residências em todo o Brasil.
A crítica ao uso de debêntures é infundada: trata-se de um instrumento legítimo, previsto em lei, supervisionado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e essencial para viabilizar os investimentos que estão transformando o saneamento no Brasil. Esse mecanismo foi criado pelo poder público justamente para permitir o financiamento de infraestrutura de longo prazo — um setor que exige investimentos intensivos em capital e retornos ao longo de décadas.
É completamente falso afirmar que o pagamento de juros comprometeu investimentos ou força de trabalho da BRK. Entre janeiro de 2024 e meados de 2025, a empresa contratou, promoveu e reconheceu milhares de funcionários. A BRK manteve um CAPEX médio anual de aproximadamente R$ 1 bilhão, prova concreta do nosso compromisso com a expansão dos serviços e a entrega de resultados. O recente maior volume de pagamentos de juros decorre do aumento da taxa básica de juros no mercado doméstico — um fator macroeconômico que afeta toda a economia brasileira e está fora do controle da administração da empresa.
Vale destacar que a maior parte dos ativos da BRK ainda está em fase de ramp-up, fase que exige grandes investimentos financiados principalmente por meio de dívida. Nesse contexto, é natural que a distribuição de dividendos ocorra apenas quando os serviços forem universalizados, e não durante as fases iniciais das operações. Tanto o reinvestimento de dividendos quanto a emissão de debêntures receberam a aprovação unânime dos acionistas Brookfield e FI-FGTS, investidores de longo prazo da empresa, engajados com a estratégia da BRK e com o setor de saneamento.
Os municípios atendidos pela BRK estão entre os mais bem avaliados do país, segundo os principais rankings de saneamento do Brasil. Com base no Ranking Nacional de Saneamento 2025, elaborado pelo Instituto Trata Brasil, Limeira (SP) conquistou o segundo lugar nacional e o primeiro lugar entre as cidades operadas por empresas privadas, com serviços universalizados. Aparecida de Goiânia (GO) subiu 12 posições e alcançou a sexta posição, destacando-se entre os municípios que mais investiram em saneamento. No Tocantins, as 46 cidades operadas pela BRK têm 100% de abastecimento de água, e Palmas (TO), com serviços de água e esgoto universalizados, é a capital mais bem avaliada da Região Norte. Na Região Metropolitana de Maceió (AL), por exemplo, já foram investidos mais de R$ 770 milhões — valor superior ao reportado erroneamente no relatório —, garantindo avanços significativos. Um cronograma robusto de obras está em andamento, em linha com as metas contratuais estabelecidas.
Por fim, é fundamental destacar que os investimentos privados têm acelerado a transformação do saneamento no Brasil. Desde a aprovação do Marco Legal, entre 2020 e 2023, a participação do setor privado nos investimentos cresceu de 15,1% para 27,3%, atingindo R$ 6,7 bilhões em 2023. Nesse período, 6,3 milhões de domicílios passaram a ter acesso à água tratada e outros 6,1 milhões foram ligados à rede de esgoto, representando a maior transformação da história do setor.”