Processo na Itália pode condenar brasileiro por crimes da ditadura

Atualizado em 9 de setembro de 2020 às 12:56
Manifestantes participam de Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em São Paulo.
Foto: Facebook

Por Pedro Antunes

Pela primeira vez na história, um brasileiro será julgado, podendo ser condenado, por crimes cometidos em nome do regime da ditadura militar. O brasileiro Átila Rohrsetzer será julgado no próximo dia 11 de setembro pela justiça italiana por participação no sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver de Lorenzo Viñas durante a ditadura militar brasileira e pode ser condenado à prisão perpétua. À época do crime, o réu Átila Rohrsetzer era diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul. Ao ser citado pelo governo italiano através da carta rogatória enviada ao Superior Tribunal de Justiça em 2011, Rohrsetzer declarou que não se submete à jurisdição italiana, por entender absurdas as acusações.

O processo na Itália pode ser o primeiro a condenar um brasileiro pelos crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). O caso iniciado em 2016 julga à revelia Átila Rohrsetzer por participação no sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas Gigli em 1980, na fronteira de Paso de los Libres (Argentina) e Uruguaiana (Brasil).

Caso seja condenado por sentença transitado em julgado, o brasileiro poderia ter sua extradição solicitada pela Itália ao Brasil, a partir do Tratado de Extradição firmado entre os dois países em 1989. Contudo, com base no artigo 5º, inciso LI da Constituição Federal brasileira, o país não extradita brasileiros natos.

Ainda assim, uma sentença penal internacional de condenação pelos crimes da ditadura é de extrema relevância para o combate à impunidade aos crimes de lesa humanidade perpetrados por agentes públicos brasileiros entre 1964 e 1985. Dessa forma, a sentença pode ser um marco para a mobilização da sociedade civil em torno da rediscussão da Lei de Anistia e da aplicação antidemocrática que tem sido dada a ela pelo sistema jurídico brasileiro, que impede a devida responsabilização e efetivação da justiça pelos crimes cometidos durante a ditadura.

SOBRE O CASO

O processo é desdobramento de um julgamento maior, envolvendo casos da Operação Condor – acordo político-militar de colaboração entre as ditaduras latino-americanas para a repressão e tortura sistemática, desenvolvido no contexto da Guerra Fria.

O processo principal, aceito pela Justiça italiana em 2007, investigou os crimes cometidos por agentes de ditaduras do Cone Sul contra cidadãos ítalo latino-americanos entre 1973 e 1980 a partir de denúncias de parentes de vítimas.

Nesse processo, foram denunciadas 146 pessoas, incluindo quatro brasileiros. 33 tornaram-se réus, dos quais foram condenados 8 ex-presidentes e militares sul-americanos à prisão perpétua por assassinato e 19 foram absolvidos. Alguns denunciados faleceram durante os desdobramentos do processo.

A denúncia contra agentes militares brasileiros levou à abertura de um processo paralelo, cuja sentença sairá em 11 de setembro. No início, eram quatro os acusados brasileiros pelo assassinato do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Vinãs Gigli, cometido durante o período de atuação da Operação Condor: João Osvaldo Leivas Job, Carlos Alberto Ponzi, Átila Rohrsetzer e Marco Aurélio da Silva Reis, que ocuparam cargos de chefia da aparelhagem de repressão da ditadura militar brasileira. Contudo, entre 2016 e 2019, falecerem três dos inicialmente acusados. Assim, Átila Rohrsetzer é atualmente o único réu.

SOBRE A VÍTIMA

Lorenzo Ismael Viñas foi estudante de Ciências Sociais em Buenos Aires, na Argentina, onde ingressou no movimento estudantil em 1969 e, em 1970, aderiu à Juventude Universitária Peronista (JUP). Militante da organização Montoneros, que atuou contra a ditadura argentina, desapareceu em 26 de junho de 1980, aos 25 anos, na região de Uruguaiana.

Após casar-se com Claudia Olga Ramona Allegrini, foi preso por nove meses em 1974 no Presídio Villa Devoto, na capital da Argentina. Logo após, mudaram-se duas vezes, para o México e para o Brasil, retornando à Argentina em 1979, onde nasceu a filha do casal, em maio de 1980.

Segundo a denúncia, diante das perseguições políticas o casal decidiu mudar-se para a Itália. Assim, com nome falso de Nestor Manuel Ayala, Lorenzo Vinãs tentou viajar de ônibus para o Rio de Janeiro em 26 de junho de 1980, onde posteriormente encontraria sua esposa e partiria para a Itália. Contudo, interceptado na fronteira entre Argentina e Brasil, entre as cidades de Paso de Los Libres e Uruguaiana, nunca chegou ao Rio de Janeiro.

A última pessoa a vê-lo vivo, a ex-militante montonera Silvia Noemi Tolchinsky, depôs em 2018 para a justiça italiana. Segundo a testemunha, ela e Lorenzo Viñas estiveram presos juntos no centro clandestino de detenção do Campo de Mayo, propriedade do Exército argentino localizada na grande Buenos Aires. Em seu depoimento, relatou que Lorenzo lhe disse que já estaria preso há mais de 90 dias. A vítima também carregava a foto de sua filha, nascida 20 dias antes de seu sequestro. A última vez que Silvia o teria visto com vida fora provavelmente momentos antes de Vinãs ser assassinado, jogado ao mar por aeronaves.

O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pela prisão e tortura de Viñas em 2 de agosto de 2005 na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Assim, a família foi indenizada pelo Estado pelo desaparecimento forçado do ítalo-argentino. Além disso, o caso consta do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (2009, 2ª ed.); também foi denunciado pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) da Argentina por meio do registro de nº 992. Por fim, o caso também foi levado à Comissão Nacional da Verdade, constando em seu relatório final.

SOBRE O ACUSADO

Átila Rohrsetzer é citado três vezes no volume 1 do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade. Militar do Rio Grande do Sul, hoje residente de Florianópolis, foi apontado pelo documento na chefia de uma série de aparelhos da estrutura repressiva da ditadura militar brasileira, entre eles, o Serviço de Informações do Comando do III Exército, de 1967 a 1969; a Divisão Central de Informações (DCI), órgão com funções equivalentes ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que atuava em parceria com as áreas de segurança e informações do III Exército, em 1970 e 1971; e o próprio DOI-CODI do III Exército em 1974 e 1975.

Dessa forma, o Relatório, por meio de pesquisa documental e, especialmente, de relatos das vítimas e de testemunhos, identificou Átila Rohrsetzer como participante em graves violações de direitos humanos a pelo menos oito pessoas, entre elas, dois cidadãos ítalo-argentinos: Horacio Domingo Campiglia Pedamonti e Lorenzo Ismael Viñas Gigli.