Procurador tido como ‘espinho’ na vida de Bolsonaro e da Lava Jato defende quarentena eterna a juízes e promotores

Atualizado em 23 de agosto de 2020 às 11:22
Lucas Rocha Furtado
Diogo Xavier / Câmara dos Deputados

Publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)

POR RAFA SANTOS

De janeiro de 2019 a julho de 2020, Lucas Rocha Furtado, subprocurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, protocolou 173 representações relacionadas a atos do Poder Executivo.

A produtividade o fez ganhar a alcunha de “espinho” do presidente Jair Bolsonaro no TCU. Furtado renega o apelido. “Nunca tive nenhum apelido e não gostaria de ser chamado de espinho. É uma função ingrata. A minha atuação é apenas uma reação aos atos do governo”, afirma.

Além do apelido que refuta, também é acusado por apoiadores do governo de atuar com propósitos eleitorais. Algo que nega com veemência. Segundo ele, quem opta por entrar no Ministério Público ou na magistratura deveria ser impedido por prazo indeterminado de disputar cargos públicos.

Natural de Fortaleza, Furtado sofreu um acidente vascular cerebral em 2008 e teve que ficar afastado um ano de suas atividades. O AVC deixou algumas sequelas e a aposentadoria era uma opção. Ele, no entanto, preferiu seguir trabalhando no Ministério Público. “Dando trabalho”, como gosta de resumir o seu trabalho. Outra definição de sua atuação é a de ser uma ponte entre o trabalho da imprensa livre e o Poder Público.

“Tive que me reinventar após o derrame e me conferi esse papel. De atuar como uma ponte entre a investigação efetuada pela imprensa e o TCU. Se há mérito ou demérito nessa minha atuação, atribuo isso à própria imprensa. Minha função é simplesmente levar essas demandas adiante para que não caiam no vazio como no passado. Não deixo cair. Investigo qualquer denúncia publicada pela imprensa desde que contenha o mínimo de elementos que justifiquem um procedimento no meu campo de atuação”, explica.

Questionado sobre o número exato de representações que já fez no governo Bolsonaro, Furtado diz não saber, mas dá uma pista de como seu trabalho é orientado. “Há uma notícia de que o orçamento irá prever mais para a Defesa do que para a Educação. Isso me deixa inquieto. Devo agir? É político? Por que alguém pode considerar política essa atuação, não vou agir? Mais uma representação para essa estatística que procuro não conhecer”, resumiu.

Essa inquietação pode ser conferida na diversidade dos temas questionados pelo subprocurador. Já fez desde representações sobre anúncios de empresas do governo em sites de fake news, investigações do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sobre jornalistas e até uma que pede ao TCU que impeça o presidente de fazer propaganda da cloroquina.

Em entrevista à ConJur, além de falar sobre sua atuação em meio à pandemia, afirma que a OAB deveria ser fiscalizada pelo TCU e que o fato do consórcio da “lava jato” ter prestado bons serviços ao país não torna ninguém imune à fiscalização.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

ConJur — O senhor tem sido notoriamente uma das figuras mais atuantes no que diz respeito aos pedidos de fiscalização do dinheiro público no governo Bolsonaro. Alguns enxergam no seu trabalho ambições políticas. Como lida com essa crítica? Quantas representações fez desde o início do governo?
Lucas Rocha Furtado — Muito se discute se haveria ou não quarentena para juízes e promotores se lançarem na política. Por mim, esse prazo seria eterno. Se uma pessoa opta por ser juiz ou promotor, não poderia nunca disputar um cargo político. Pessoas nesses cargos podem tomar medidas que as colocam em situação de destaque e que colocariam em risco a isonomia com quem devem agir. Eu, particularmente, não tenho nenhuma pretensão política. O meu quadrado é o Ministério Público.

ConJur — Em entrevista recente, o senhor se definiu como um “espinho” no caminho que o governo escolheu. Como seria isso, poderia explicar melhor?
Furtado — Foi um repórter que me entrevistou e me informou sobre eu ser considerado um “espinho”. Não sabia que era conhecido como um “espinho”. Nunca tive nenhum apelido e não gostaria de ser chamado de assim. É uma função ingrata. A minha atuação é apenas uma reação aos atos do governo. É como na segunda Lei de Newton [princípio fundamental da dinâmica]. Minha atuação é apenas a de trabalhar para exercer o controle que existe e que deveria existir em qualquer atividade pública ou privada. Faz parte de qualquer atividade ela ser controlada.

Encaro a questão do espinho no sentido de que fico parado. Minha função é não me mexer. Só que, se eventualmente alguém cruzar o caminho que fere o interesse público, posso incomodar. Nesse sentido posso até ser um espinho. Não que eu queira incomodar quem quer que seja.

Não gostaria que minha atividade fosse vista como uma atividade política, porque não é. Será que a omissão não poderia ser considerada uma opção política? Não é minha pretensão adotar uma postura política. Só exerço a minha função.

ConJur — Muitos dizem também que o senhor tem ultrapassado os limites da competência do TCU. O senhor concorda de alguma maneira com isso? Qual o limite da competência do MP junto ao TCU?
Furtado — Em matéria de competência do TCU, posso dizer que temos duas visões. Uma mais tradicional e outra mais moderna, de combate à corrupção. A mais tradicional foi inclusive a responsável por colocar o Brasil na posição de um dos países mais corruptos do mundo, segundo a Transparência Internacional. É isso que nós queremos para o Brasil? Que a primeira linha de combate à corrupção seja enfraquecida? Que o Tribunal de Contas seja um tribunal de faz de conta? Ou um tribunal que efetivamente combata a corrupção? Combater a corrupção demanda um processo longo que vai demandar muito esforço. Espero que com apoio da população. Esse apoio vai ser imprescindível para chegarmos a um bom termo para o bem do Brasil. Vale lembrar que os efeitos da corrupção para a economia brasileira foram muito negativos.

ConJur — Em um cenário atípico como o da epidemia, qual deve ser o papel do MP junto ao TCU? Como encontrar o equilíbrio entre a fiscalização e a alta demanda de verbas e gastos do governo no combate à Covid-19?
Furtado — Em momento de pandemia se exige do fiscal ainda mais do que se exige normalmente. É certo que ninguém quer ser posto atrás das grades. Ter uma prisão decretada pode acabar com a vida de uma pessoa. É preciso ter muito equilíbrio para exercer a competência conferida pela Constituição de combate à corrupção ao MP e à magistratura. É preciso separar o que é fraude do que é efetivamente aumento normal de preço por conta da pandemia e do aumento de demanda. Somente uma investigação cuidadosa pode demonstrar essa diferença.

Só que prender antes do fim da investigação infere o risco de acabar com a vida da pessoa. Existe, por trás de cada suposta ilegalidade apontada, uma vida humana. É preciso combater as fraudes sem cometer abusos. É uma atividade muito difícil e complicada.

ConJur — O senhor fez uma representação que resultou no pedido do TCU para que se investigue a denúncia de que os procuradores da “lava jato” usaram aparelhos de monitoramento de ligações telefônicas que depois desapareceram. Outra representação se opunha à criação de uma fundação privada com recursos públicos que acabou barrada. Acredita que as ferramentas para controle de gastos no MP poderiam ser mais eficientes?
Furtado — Sobre a “lava jato”, é preciso que se diga que todos devem observar a legalidade. Ponto. Inclusive a “lava jato”. Não há dúvida de que a operação prestou grandes serviços ao Brasil. Isso é acima de qualquer questão. Inclusive observei isso na representação e reitero. É uma das mais importantes operações de combate à corrupção ocorridas em toda a história do mundo. Isso é um passaporte para irregularidades? Não.

Não considero. Ao contrário. Sendo a “lava jato” um exemplo de combate à corrupção, deveria se comportar no sentido de comprovar exemplarmente que não existiu o desaparecimento que era ou poderia ser usado para escutas.

A operação deveria ser capaz de comprovar que esse aparelho não existe. Estamos aguardando. Grandes poderes demandam ou deveriam demandar também grandes responsabilidades. Todos devemos responder pelos nossos atos.

ConJur — A OAB é uma autarquia? Deveria ser fiscalizada pelo TCU?
Furtado — A OAB é uma autarquia. Tanto que não paga determinados impostos, por exemplo, como o IPTU e IPVA. Podem inscrever qualquer advogado em dívida ativa, o que caracteriza autarquia. E como qualquer autarquia deve se sujeitar à apreciação de contas perante ao TCU.

ConJur — O balcão único da leniência funciona sem o MPF?
Furtado — Seria essencial que o Ministério Público Federal participasse. A não participação do MPF pode prejudicar a segurança jurídica fundamental à leniência.

ConJur — O colaborador da justiça não deveria ter proteção contra retaliação nos moldes dos whistleblowers?
Furtado — Muita coisa boa poderia ser feita no Brasil copiando o que funciona e o que dá certo em outros países. A figura do whistleblower no sistema norte-americano é um exemplo. Seria bom para o Direito brasileiro. Vale dizer que algumas dessas inovações esbarram na falta de recursos. Às vezes a medida no papel é maravilhosa, mas não pode se tornar efetiva na prática.