Professor faz queixa ao FBI após receber ameaça de bolsonarista

Atualizado em 27 de julho de 2020 às 23:47
“Parece que esquerdista tem família no Brasil”, diz bolsonarista exibindo foto de arma

Publicado originalmente no Diário de Notícias:

Por João Almeida Moreira

Um académico brasileiro que investiga o comportamento digital dos apoiantes de Jair Bolsonaro, presidente da República do Brasil, apresentou queixa no FBI e na polícia brasileira depois de receber uma ameaça de morte.

David Nemer, professor titular e pesquisador no Departamento de Estudos de Media na Universidade da Virgínia, especialista em Antropologia da Informática e autor do livro “Favela Digital: O outro lado da tecnologia”, esteve por quase um ano inserido em quatro grupos de WhatsApp de apoiantes de Bolsonaro para entender o seu funcionamento.

Desde então, recebe com frequências insultos mas, por duas vezes, uma em dezembro e outra na semana passada, o ataque foi mais ameaçador. “O esquerdista tem família no Brasil, né?”, perguntou o autor da última, junto a duas fotos de armas.

“Recebi umas mensagens esquisitas no Instagram, com fotos de armas e ameaças de morte e obedeci desde logo ao protocolo nestes casos, denunciei nas redes sociais, apresentei queixas, na polícia brasileira e ao FBI, e falei com os media tradicionais”, conta Nemer, 35 anos, ao DN.

“Soube, entretanto, que mais três pessoas que, como eu, têm por hábito conversar com a imprensa para artigos ou assinam mesmo colunas em jornais, receberam ameaças semelhantes, com foto igual e textos diferentes, mas preferiram não divulgar”.

“O que motivou, penso eu, foi uma entrevista que dei ao portal UOL sobre o Parler”. Nela, o pesquisador dissera que essa rede social, a nova febre entre os conservadores, é menos equilibrada do que o Twitter. “Como a pessoa que me ameaçou questiona isso e me mandou uma entrevista do Jack Dorsey, CEO do Twitter, em que ele diz que a rede tem um viés de esquerda, acredito que foi esse o motivo”.

Já em dezembro Nemer fora obrigado a voltar à pressa para os Estados Unidos depois de receber um email anónimo com a palavra “cuidado” a acompanhar uma fotografia sua no Parque Ibirapuera, no centro de São Paulo, onde estivera dias antes.

Gabinetes no Planalto e no Congresso

Na liderança desses grupos que intimidam estão o próprio presidente da República ou os seus três filhos políticos, o senador Flávio, o vereador Carlos e o deputado federal Eduardo? Para Nemer, “é difícil dizer que sim, em definitivo”.

“Mas sempre que há investigações aos IP que comandam a rede chegam aos gabinetes deles no Palácio do Planalto ou no Congresso Nacional”, refere.

Investigações levadas a cabo pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito de operações contra a propagação de fake news, e pelo Facebook chegaram a essa conclusão. A empresa de Mark Zuckerberg removeu 73 contas, 14 páginas e um grupo no último dia 8 por “uso de registos falsos, envio de spam e adoção de ferramentas artificiais para ampliar presença online”. Essas contas pertenciam a ​​​​​​funcionários dos gabinetes de Bolsonaro, no Planalto, e de Flávio e de Eduardo, no Congresso.

“Além disso, o discurso violento de Bolsonaro”, continua Nemer, “faz estes apoiantes se sentirem legitimados, é ele que determina a música que a banda vai tocar, ele é o líder moral deles”.

Não foi só o pesquisador e mais três colunistas seus amigos a sentirem na pele a perseguição dos bolsonaristas. Outros académicos, alguns políticos e também jornalistas sentiram necessidade de recorrer ao exílio forçado para se defender de ameaças.

Desde 2017 – ano anterior à eleição de Bolsonaro – a organização Scholars at Risk recebeu 41 pedidos de ajuda de pesquisadores querendo sair do país para se proteger. O número de intimidados, porém, é maior, revelava reportagem do jornal Correio Braziliense, em março.

“E isso nunca existiu no Brasil, perseguições pode ter havido em casos de crimes, mas a deputados, jornalistas, académicos, é inédito”, lembra Nemer.

Escolta policial

O deputado Jean Wyllys, do PSOL, partido de extrema-esquerda, abdicou do seu mandato no início do ano e está em Berlim; Márcia Tiburi, que concorreu ao governo do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT), mora na região de New England, nos Estados Unidos; Anderson França, escritor que denuncia casos de abusos policiais e de racismo nas favelas do Rio de Janeiro, mudou-se para Portugal; e Débora Diniz, antropóloga da Universidade de Brasília, também está fora do Brasil.

“A dado momento de 2018”, contou esta última ao DN em novembro passado, “o crescimento da extrema-direita, a disseminação do ódio, a perseguição aos valores da igualdade de mulheres, gays, negros e indígenas e a consequente ascensão ao poder do presidente Bolsonaro coincidiram no tempo com as discussões no Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto e o meu ativismo e as minhas pesquisas académicas em torno do tema”.

“Por um período que se estendeu de abril de 2018 até às eleições de outubro e prosseguiu ainda em 2019, fui alvo do extremismo. Senti não tanto que era a hora de partir, mas mais que estava debaixo de um mandato de expulsão quando passei a precisar de ter escolta policial, a minha escola foi ameaçada de massacre e os meus colegas de departamento e alunos foram ameaçados”.

Segundo afirmava Diniz, “há um processo de intensificação da intolerância da ultra-direita às conquistas recentes de igualdade da sociedade brasileira, como a ascensão de uma classe trabalhadora ao universo do consumo. E ao facto de as populações de mulheres, negros, indígenas e gays passarem a dizer ‘eu existo’, ‘eu reclamo direitos’, ou seja, tudo o que toca os valores do patriarcado, religioso, militar, dos quais Bolsonaro é ícone, logo Bolsonaro é parte desse fenómeno que levou ao meu mandato de expulsão.”

Jean Wyllys, que já em 2015, também em entrevista ao DN, dizia temer a escalada do fanatismo religioso a propósito do poder adquirido pelo então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, artífice do impeachment de Dilma Rousseff, saiu do Brasil em janeiro de 2019. “Como é que vou viver durante quatro anos dentro de carros blindados sem conseguir frequentar os lugares que habitualmente frequento?”, questionava-se, pouco depois de ter sido autorizado pela polícia a usar escolta após a eleição de Bolsonaro.

Wyllys, único homossexual assumido do Congresso Nacional na legislatura anterior, havia mantido confrontos com o então seu colega deputado Bolsonaro, nomeadamente, na votação do impeachment. Chamado de gay em termos pejorativos quando declarava o seu voto, reagiu cuspindo no hoje presidente.

Além disso, era próximo da colega de partido Marielle Franco, vereadora executada em março de 2018 por membros ligados à milícia (o nome atribuído às máfias cariocas) Escritório do Crime, segundo a polícia. Wyllys, que faz doutoramento em Berlim e passou por Portugal num périplo no início de 2019 para denunciar o seu caso, sublinhou na hora da saída que o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, empregou no seu gabinete familiares de Adriano da Nóbrega, o suposto líder do Escritório do Crime assassinado em fevereiro.

Fernanda Chaves, a assessora de Marielle que, ao contrário da vereadora e do motorista Anderson Gomes, sobreviveu ao atentado, saiu do Brasil e só voltou ao país meses depois. Por segurança, não revela a cidade onde mora.

Vida de cabeça para baixo

Márcia Tiburi, por sua vez, queixou-se de ter a vida virada de cabeça para baixo por ser obrigada a fazer-se acompanhar por seguranças a cada evento e por ter de contratar uma task force só para combater as notícias veiculadas a seu respeito nas redes sociais.

Filósofa, escritora e jornalista, aproveitou já se encontrar nos Estados Unidos, onde se deslocou sob o pretexto de estar numa residência literária a terminar o seu último livro, para passar a viver na região de New England. Está inscrita, segundo disse ao jornal Valor Económico, num programa chamado City of Asylum que oferece acolhimento e segurança a escritores ameaçados pelo mundo.

Nas últimas eleições, Tiburi, pelo PT, foi a sétima candidata mais votada para o cargo de governadora do Rio de Janeiro, com perto de 6% dos votos.

Anderson França, que depois de anos a denunciar abusos policiais e racismo nas comunidades crentes do Rio mora hoje em Portugal, queixa-se de ter sido obrigado a escapar por ser vítima de ameaças de morte de membros do autoproclamado maior fórum brasileiro de extrema-direita.

Segundo reportagem de julho do jornal The Guardian, os membros anónimos desse site a operar hoje apenas na chamada dark web, e cujo nome a polícia prefere não divulgar, discutem pedofilia, violação corretiva de lésbicas, planos de massacre a escolas e ataque a marxistas.

Como funcionam as milícias virtuais

Voltando a David Nemer, em agosto do ano passado, ele contou ao DN parte do resultado da sua pesquisa nos grupos online de extrema-direita. “A maior parte dos membros desses grupos, durante as eleições, estava preocupado em ter acesso a conteúdo que pudesse reafirmar o apoio deles ao Bolsonaro assim como promover o candidato em outros grupos de WhatsApp e usar esses conteúdos para discutir com pessoas que votariam em outros candidatos, como o candidato do PT, Fernando Haddad”, dizia.

Com a eleição de Bolsonaro (e derrota de Haddad) consumada, parte desses membros saiu dos grupos. “Até porque eles são extremamente ativos: na época das eleições, em quatro grupos, eu recebia em torno de 100 mensagens por dia”, diz Nemer.

Segundo o pesquisador, esses grupos, formados em pirâmide – em cima, os influenciadores, responsáveis por manipular e falsificar notícias, depois os apoiantes mais fanáticos, que as propagam para um exército de trolls, que, então, as espalham de vez pelos brasileiros comuns, causando mais impacto do que a media tradicional. Daí, uma das explicações para Bolsonaro, mesmo com oito segundos apenas de tempo de antena televisivo, ter obtido dez vezes mais votos do que Geraldo Alckmin, de centro-direita, que dispôs de cinco minutos.

Da eleição para cá, entretanto, esses quatro grupos onde Nemer se inseriu dividiram-se em dez. Porque quem votou em Bolsonaro fê-lo por motivações diferentes – às vezes inconciliáveis.

“Ele prometeu um governo economicamente liberal [representado por Paulo Guedes, ministro da economia], uma maior presença do exército [representada por cerca de 2500 militares no governo], obedecer à ideologia de Olavo de Carvalho [o guru intelectual da nova direita brasileira], ser fiel às demandas do neo-pentecostalismo evangélico [cuja ministra dos direitos humanos Damares Alves é uma das figuras mais destacadas] e de braço dado com a extrema-direita [representada pelo seu filho Eduardo Bolsonaro]”.

Ora esses novos grupos tendem a ser mais radicais e a atacar Bolsonaro… pela direita. “Essa radicalização passa por acabar com o que chamam de “legado do PT” a qualquer custo já que o objetivo do PT, segundo eles, é implementar o comunismo no país e para eles, comunismo significa corrupção e Fernando Henrique Cardoso também [antecessor de Lula e militante do PSDB de centro-direita] faz parte desse complot comunista”, diz Nemer.

“Por outro lado, esses grupos repudiam os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), porque acham que eles se identificam com a ideologia do PT e porque a corte criminalizou a homofobia e reconheceu civilmente pessoas transgénero”.

Nemer, entretanto, identificou e batizou o mais radical dos grupos como “supremacista social”. “Os seus membros estão menos interessados nos atos políticos diários do governo e mais no discurso de extrema-direita promovido pelo presidente e pelo seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro”, diz. “Eduardo promove a sua retórica usando técnicas condizentes com a propaganda de extrema-direita americana (…) os supremacistas sociais compartilham conteúdo pró-armas, racistas, anti-LGBT, antissemita e anti-Nordeste”.