A aprovação de uma norma que proíba uma pessoa presa de firmar delação premiada não afetaria os acordos já em vigor, pois a lei processual penal não tem efeitos retroativos. Assim, a manobra cogitada por parlamentares para salvar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não deve ter o efeito pretendido.
Na última quarta-feira (5/6), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), incluiu na pauta de votações do Plenário da casa um requerimento de urgência de apreciação do Projeto de Lei 4.372/2016. A proposta, de autoria do ex-deputado Wadih Damous (PT-RJ) — atualmente secretário Nacional do Consumidor —, proíbe a celebração de acordo de delação premiada por investigados presos.
Segundo o projeto, “somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor”.
O objetivo, conforme Damous, é preservar o “caráter voluntário do instituto” e “evitar que a prisão cautelar seja utilizada como instrumento psicológico de pressão sobre o acusado ou indiciado, o que fere a dignidade da pessoa humana, alicerce do Estado democrático de Direito”. Além disso, argumenta ele, a alteração visa a evitar que prisões preventivas sejam decretadas sem a presença dos requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal.
A proposta ainda criminaliza a divulgação dos depoimentos tomados no âmbito da delação premiada. A pena prevista varia de um a quatro anos de reclusão, além de multa. O intuito é “evitar que os vazamentos destruam a honra e a intimidade de pessoas sobre as quais não pesam acusações formais”, de acordo com o ex-parlamentar.
O desarquivamento do projeto — que havia sido arquivado em 2018 — e o pedido de urgência foram interpretados como uma tentativa de Lira de salvar Jair Bolsonaro. O ex-presidente é alvo de investigações da Polícia Federal baseadas na delação premiada firmada com o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro durante todo o seu mandato na Presidência da República.
Outro contexto
Wadih Damous afirmou à revista eletrônica Consultor Jurídico que o PL 4.372/2016 foi apresentado em outro contexto, de “estado de exceção”, configurado pelos abusos da “lava jato”. “Era um cenário de desmando absoluto. Prisões preventivas arbitrárias eram utilizadas para obter delações. O projeto de lei procurou enfrentar esse contexto.”
O secretário Nacional do Consumidor também critica a súbita atribuição de urgência para a votação da proposta. “O PL foi rejeitado pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados. E ficou vários anos esperando análise da Comissão de Constituição e Justiça, que, inclusive, foi integrada por Arthur Lira. Por que só agora resolvem dar caráter de urgência? É preciso perguntar isso a Arthur Lira.”
Contudo, se o objetivo for anular delações contra Bolsonaro “de forma oportunista”, não dará certo, porque a lei processual não retroage, nem para beneficiar réus e acusados, destaca Damous. E os especialistas no assunto ouvidos pela ConJur têm entendimento semelhante.
O criminalista Fernando Augusto Fernandes ressalta que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o fato de o acusado estar preso não retira a voluntariedade do acordo de colaboração premiada — um dos requisitos para a validade do compromisso.
No Habeas Corpus 127.483, o relator, ministro Dias Toffoli, afirmou que a validade da delação está condicionada à liberdade psíquica do agente, e não à sua liberdade de locomoção. Dessa forma, disse o magistrado, não há impedimento para o acusado preso firmar acordo de colaboração.
“A declaração de vontade do agente deve ser produto de uma escolha com liberdade (= liberdade psíquica), e não necessariamente em liberdade, no sentido de liberdade física. Portanto, não há nenhum óbice a que o acordo seja firmado com imputado que esteja custodiado, provisória ou definitivamente, desde que presente a voluntariedade dessa colaboração. Entendimento em sentido contrário importaria em negar injustamente ao imputado preso a possibilidade de firmar acordo de colaboração e de obter sanções premiais por seu cumprimento, em manifesta vulneração ao princípio da isonomia”, declarou Toffoli em seu voto no HC 127.483.
“Em que pese eu ser contra a colaboração premiada, a matéria já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, não é passível de mudança através de legislação nova. De toda forma, mesmo que o fosse, não retroagiria às situações anteriores já concretizadas”, opina Fernandes.
Aberração jurídica
Se o PL 4.372/2016 for aprovado pelo Congresso Nacional, ele não afetará acordos de colaboração premiada já homologados, uma vez que norma processual penal não retroage, conforme o artigo 2º do Código de Processo Penal, avalia o advogado Diogo Malan.
Porém, o criminalista ressalta que não se pode prender para forçar alguém a delatar. “A prisão processual decretada com finalidade — explícita ou velada — de coagir o acusado a celebrar acordo de colaboração premiada é verdadeira aberração jurídica ou desvio de finalidade, a merecer pronto controle jurisdicional em sede de Habeas Corpus.”
Logo, diz Malan, a solução para o problema está na “correta intepretação e aplicação judicial dos standards constitucionais, convencionais e legais que limitam o emprego casuístico da prisão processual, e não na proibição de o preso celebrar acordo de colaboração premiada”.
Nessa mesma linha, o procurador da República Vladimir Aras entende que a proibição de preso delatar só valeria para os casos posteriores à entrada em vigor da lei, mas a aprovação da norma “daria argumento para quem quiser sanear o passado”.
Segundo o membro do Ministério Público Federal, a vedação à colaboração premiada da pessoa presa acabaria com as delações relacionadas ao crime organizado violento e ao terrorismo.
“Faccionados que queiram colaborar com a Justiça não poderão ser presos ou terão de ser soltos. O caso Hildebrando Pascoal teria terminado em impunidade porque um dos principais colaboradores estava preso. A Chacina de Unaí também terminaria em impunidade porque um dos pistoleiros, que se tornou colaborador do MPF, estava preso. Sem ele, não se chegaria aos mandantes”.
A colaboração premiada não serve para lidar apenas com crimes de colarinho branco, e é preciso que o Congresso entenda isso, destaca Aras. O instrumento, aponta ele, é ainda mais efetivo em casos de crimes violentos, como demonstram as experiências italiana e americana. Não é por acaso que o mecanismo é recomendado pela Convenção de Palermo, declara o procurador.
“Assim, se o potencial colaborador estiver solto, o acordo dependerá de sua prévia soltura, mesmo que se trate de um maníaco sexual ou de membro de um grupo de extermínio ou integrante de uma quadrilha de assaltantes”, afirma Aras.
Publicado originalmente no ConJur
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