Publicado originalmente no Brasil de Fato:
POR NARA LACERDA
Às vésperas da semana em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 71 anos, a Coalizão Negra por Direitos encerrou seu primeiro encontro internacional em São Paulo trazendo à tona os desafios das garantias dos direitos básicos para a população preta no Brasil e no mundo. Em uma das falas mais emocionantes, o pai da vereadora Marielle Franco, Antônio Francisco da Silva Neto, destacou o que significa o projeto de lei apresentado pelo governo de Jair Bolsonaro que prevê o abrandamento de punições para agentes de segurança. “O excludente de ilicitude vai matar a nós, negros e negras, primeiro”, afirmou.
Francisco, do Instituto Marielle Franco, no Rio de Janeiro, classificou como um risco para a população preta o PL que tramita no Congresso para que agentes de segurança não sejam punidos e responsabilizados criminalmente por excessos durante a atuação, inclusive em casos de assassinatos.
Durante sua fala, ele afirmou também que os avanços em políticas públicas e nas condições de vida nas últimas décadas são insuficientes para sanar os problemas enfrentados pela população negra. “Existem direitos humanos no Brasil? Não. Se existissem, não estaríamos debatendo o assunto aqui.”
Francisco ressaltou que a família da vereadora é contra a federalização das investigações do assassinato de Marielle, ocorrido março de 2018 e até hoje não esclarecido, por temor de que o governo federal de Jair Bolsonaro tenha controle sobre as apurações.
Resistência
As falas de Francisco foram feitas durante a mesa que abriu a programação do último dia do Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos, “Resistência à violência do Estado e ao genocídio negro: extermínio, encarceramento, pacote Moro”.
Além dele, também participaram do debate Debora Maria, do movimento Mães de Maio, de São Paulo; Giselle Florentino, do projeto Direito à Memória e Justiça Racial, do Rio; Katiara Oliveira, da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, de São Paulo; Railda Silva, da Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar), de São Paulo; Rute Fiuza, do Coletivo de Mães e Familiares de Vítimas do Estado da Bahia; e Thenjiwe McHarris, do Blackbird, Movement for Black Lives, dos Estados Unidos.
As formas de resistência e organização seculares contra a violência racial e a necessidade de continuidade nesses processos foram norteadores das falas dos participantes da mesa. O grupo discutiu as possibilidades de combate e resistência, não só à violência física, mas às desigualdades econômicas e sociais que estimulam essa e outras formas de agressão ao povo preto.
Genocídio
Katiara Oliveira, da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, citou diversos casos recentes de morte e desaparecimento de jovens negros, principalmente na cidade de São Paulo, e ressaltou a importância de que a resistência seja feita nos territórios em que vive a população preta. “O Estado genocida é criativo e chama de segurança pública o que, na verdade, é necropolítica”, declarou.
Ela destacou que a resistência é tarefa urgente. “O poder popular vai acabar com o genocídio neste país e serão tantas Marielles que não vai ter bala que vai dar conta.”
Milícias e branquitude
O crescimento das milícias como sistema de controle social, não só no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil, também foi tema da mesa. Giselle Florentino, do projeto Direito à Memória e Justiça Racial, ressaltou que esses grupos estão à frente e lucram com a prestação de serviços essenciais nas comunidades. Ela destacou que o debate sobre segurança pública não pode mais ser pautado pela branquitude. “A milícia é o que o Estado oferece para o povo preto. Estamos falando de articulação de poder e do Estado como máquina de violação dos corpos pretos. Não seremos inseridos porque o racismo alavanca o capitalismo”, analisou.
Para garantir a efetividade das discussões e ações de combate à violência e ao genocídio da população preta, o grupo tratou sobre a necessidade de ocupação de espaços de decisão, ainda majoritariamente brancos. Débora Maria, do movimento Mães de Maio, foi taxativa quanto ao tema. “Não aceitamos mais ser estudados”, afirmou, no sentido de que a população negra não deve ser objeto de estudos, mas sujeito e protagonista na elaboração do debate.
Débora acrescentou ainda que é preciso combater o racismo no sistema judiciário e buscar intervenções nas instâncias governamentais federais, estaduais e municipais. “Nós não somos números, nós somos realidade”, declarou.
O 1º Encontro Internacional da Coalizão Negra Por Direitos foi realizado na Ocupação Nove de Julho, umas das mais emblemáticas da cidade de São Paulo. Encravada na região central da cidade, a ocupação abriga mais de 120 famílias e se tornou símbolo da luta pela moradia. A Coalizão reúne mais de 100 organizações para articulação e incidência política no Congresso Nacional e em fóruns internacionais.