Projeto que permite cesáreas sem indicação não garante escolha da mulher. Por Gisele Mirabai

Atualizado em 4 de setembro de 2019 às 16:22
Janaina Paschoal. Foto: Pedro França/Agência Senado

POR GISELE MIRABAI, escritora, roteirista de cinema e mãe (dois partos naturais, um pelo SUS)

“A mulher tem o direito de escolher. O corpo é dela.”

Seria bom, se fosse verdade. A frase acima foi dita pela deputada federal Carla Zambelli (PSL), ao comemorar o projeto de lei da deputada Janaina Paschoal, que dá à gestante a possibilidade de optar pela cesárea  a partir da 39ª semana de gravidez, em hospitais públicos do Sistema Único de Saúde (SUS) de São Paulo, ainda que não haja orientação médica.

Acontece que vivemos uma guerra de narrativas e fica fácil usar chavões sobre a escolha da mulher quando, na verdade, mais uma vez ela não está decidindo de forma livre sobre o seu corpo e a saúde do bebê, como deveria ser. O que dá autonomia de escolha à mulher é o conhecimento, acesso a dados, informação e estatísticas sobre os tipos de parto, durante um pré-natal cuidadoso em que o assunto é amplamente discutido.

No momento em que a parturiente chega com medo e dor a uma unidade pública de saúde, comprará a sua escolha a partir do que decidirem para ela. E sua escolha vem sempre de cima, de um padrão político-econômico que não lhe pertence, feita por corpos estrangeiros ao seu.

Quer um exemplo? O parto que hoje é conhecido como “normal” não tem nada de normal. A imagem popularizada de uma grávida deitada na cama berrando de dor não é uma escolha da mulher, mas sim de um homem, aliás de um rei. Foi Luís XIV quem determinou que a mulher ficasse deitada, para ele ver de um ângulo melhor o nascimento dos filhos, hábito que ele adorava.

O costume se popularizou na França, depois na Europa e hoje domina o mundo. Para o corpo da mulher mesmo, a melhor posição para o parto é de cócoras, já que utiliza a lei da gravidade a seu favor. Isso facilita a oxigenação e a saída do bebê e causa menos dor nas contrações, sem contar que o pós-parto é bem mais simples e de rápida recuperação, tanto para a mãe quanto para o filho.

Já no caso de uma cesariana, o pós-cirúrgico necessita de cuidados redobrados e instalações adequadas. Por essas e outras, o projeto da cesárea opcional defendido por Janaína Paschoal foi lamentado por médicos, enfermeiros e profissionais que defendem o parto humanizado.

A recomendação da Organização Mundial da Saúde é que os partos cesarianos contabilizem entre 10% e 15% do total, já que se trata de uma cirurgia necessária apenas quando vida de mãe e bebê estão em risco. De acordo com a OMS, cesáreas podem causar complicações significativas, incapacidade ou morte, sobretudo sem instalações ideais para realizar cirurgias seguras ou tratar potenciais complicações.

Mas a narrativa do “rápido e indolor”, tão vendida no capitalismo, chegará mais rápido que os dados recomendados. Isso sem contar cirurgias feitas porque a família quer que o filho nasça no dia do avô, ou para a criança ser de Libra, e não de Virgem, como já é praxe em hospitais particulares. O que acontecerá quando chegar uma grávida com real necessidade de procedimento cirúrgico e o leito estiver ocupado por uma cesárea desnecessária?

Infelizmente, conhecemos as filas de nosso sistema público e ainda não há estudos oficiais que avaliem as condições do SUS de absorver novos custos e profissionais, especialmente anestesistas, em um eventual aumento no número de cesarianas.

Por isso, em prol da escolha da mulher, o melhor projeto continua a ser o de acesso à informação. Que ela possa ter conhecimento sobre a natureza do próprio corpo, dados e evidências sobre riscos e saiba ler as narrativas sobre o parto no contexto sociopolítico, sobretudo em seu país. Aí sim haverá autonomia de escolha.

Como diz Silvia Federici, autora de “O Calibã e a Bruxa”, a reprodução dentro do sistema capitalista é vista apenas como um dom biológico e afasta a mulher do trabalho, principalmente do trabalho de decidir, enquanto a torna dependente dos homens, em um contexto onde são eles que trabalham fora e ganham o dinheiro. Mas nessa história, infelizmente quem paga o preço continua a ser a mulher.