Quando o Estado quer cobrar do preso pela sua “estadia”. Por Rodrigo Medeiros da Silva

Atualizado em 16 de junho de 2018 às 16:03
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POR RODRIGO MEDEIROS DA SILVA, mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas

Entender as posturas idiossincráticas e nefastas de muitos dirigentes brasileiros é algo de causar repulsa e indignação. O PLS 580/2015, de autoria do Senador Waldemir Moka, é talvez o ápice da escuridão pela qual a sociedade brasileira passa. A proposta do insigne representante do Estado de Mato Grosso do Sul, cujo relatório do Senador goiano Ronaldo Caiado foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Alta brasileira no último dia 6 de junho, altera a Lei de Execuções Penais no sentido de impor ao preso o dever de ressarcir o Estado pela sua “estadia” em estabelecimento prisional.
Esta é mais uma iniciativa legislativa que segue a lógica falida de um sistema punitivo que, nos últimos 200 anos, demonstrou a incapacidade do modelo técnico-corretivo adotado, que se propõe a produzir sujeitos dóceis.[1] Fica também a dúvida a respeito da natureza desta cobrança irracional. Seria de natureza tributária, assemelhada à taxa (na dicção do artigo 77 do Código Tributário Nacional)? Fica a provocação!
A proposta do Senador Waldemir Moka está completamente desconectada da realidade do sistema prisional brasileiro. Se o Estado, por meio da criminalização primária, tipifica as condutas criminosas com suas respectivas sanções, este mesmo Estado deve prover os meios para aplicação desta sanção. É algo inconcebível, nos dias atuais, que a execução penal adentre na esfera privada no sujeito apenado, interferindo violentamente no seu patrimônio por meio de inscrição em dívida ativa e outras medidas constritivas, sob o argumento de ressarcimento das despesas para sua manutenção em estabelecimento penitenciário, pois a sociedade não deveria arcar com gasto tão significativo.[2] Argumento tacanho e despropositado.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Medida Cautelar na ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, assentou que ocorreria no sistema carcerário nacional violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica, o que convolaria as penas impostas em suplícios cruéis e desumanos, o que é absolutamente incompatível com a Constituição (artigo 5º, inciso XLVII).
É o que se convencionou chamar de estado de coisas inconstitucional. Com a ilusória intenção de solucionar esta inconstitucionalidade, o parlamentar subscritor da proposta, na sua justificativa, expõe que a situação catastrófica do sistema prisional brasileiro tem como causa a falta de recursos para mantê-lo. Logo, sobrariam recursos para iniciativas nas áreas de saúde, educação, infraestrutura, dentre outras, se o custo com a assistência material fosse suportado pelo próprio segregado.[3] Tal justificativa constitui um mero sofisma. Apesar da proibição de contingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional, os valores são insuficientes para gestão do sistema.[4] Atribuindo este dever (que é do Estado) ao preso, o parlamentar não sinaliza a melhoria do sistema. É uma atitude de Pilatos, que lava as mãos ao atribuir o custeio do sistema ao custodiado.
A proposta do PLS 580/2015 ignora todo um arcabouço teórico acerca da prisão, seus objetivos reais, objetivos declarados e outros pontos de grande relevância. A pena criminal, segundo Albrecht, tem como finalidade precípua o aconselhamento no apenado no sentido persuadi-lo a ter um comportamento sóbrio e cético, o que, sob a perspectiva empírica, é ineficaz e até mesmo contraproducente.[5] Neste rumo, o sistema de execução penal vive em constante reforma e sempre fica evidente o fracasso desta concepção, o que Foucault chamou de isomorfismo reformista.[6] Na atualidade não é diferente.
Aliás, o cárcere estabelece um complexo de relações disciplinares e cria uma nova ordem ou, ainda, um modelo de “sociedade ideal”. A pena se torna instrumento de poder que tem como finalidade a destruição daquele que é tido como transgressor para sua integração à sociedade como força de trabalho.[7] É neste contexto de exploração da força de trabalho que o PLS 580/2015 vem se fundar ao estabelecer que o ressarcimento por sua permanência no cárcere tenha como origem o trabalho do preso.
O âmago desse nefasto projeto de lei consiste em atender os objetivos de implementar e concretizar um projeto excludente de sujeitos indesejáveis: pobres (pois não contribuem para uma sociedade de consumo), negros (que historicamente são segregados), drogados (que não contribuem com sua força de trabalho), dentre outros grupos estigmatizados. Ademais, esta proposição legislativa acaba por ser um pontapé inicial para a mercantilização da prisão que passa ter uma estreita ligação com o sistema de assistência social, como ocorrera nos Estados Unidos no final da década de 1990.[8] Também se pode concluir que a lógica desta iniciativa de modificação da Lei de Execuções Penais é impor uma lógica financista, segundo asseverou Baratta[9] na sua Criminologia Crítica.
Ao invés de propor medidas populistas, que trazem o gozo incomensurável à patuleia, nossos representantes no Parlamento deveriam conhecer um dado histórico importante. No último quarto do século XIX, a Europa ingressava num período de grande prosperidade econômica, período este paralisado em 1914 com o início da Primeira Guerra Mundial. O acesso a bens de consumo, aliado a períodos de baixo desemprego, fez com que os índices de criminalidade caíssem significativamente, o que, consequentemente, diminuiria a população carcerária.[10] Seria um bom começo para a adoção de medidas verdadeiramente modernizadoras.
O ressarcimento dos custos de permanência do preso no sistema penitenciário reafirma o real objetivo da pena restritiva de liberdade – a docilização do apenado. Ademais, tal iniciativa não possui qualquer substrato teórico, ancorando-se, única e exclusivamente, na lógica orçamentária ao afirmar que o Estado não possui recursos suficientes para gerir o sistema e que esta seria a principal razão para o caos das unidades carcerárias, onde vigora a superlotação, a promiscuidade, enfim, a morte e o banimento social de seres humanos.
A lógica recorrentemente pregada por alguns políticos de que “bandido bom é bandido morto” (reafirmada por uma imprensa descompromissada com a formação da opinião pública) mostra-se incompatível com o Estado que tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana e que pretende proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado, como dispõe o artigo 1º, da Lei de Execuções Penais. Também é preocupante a passividade da comunidade jurídica frente à iniciativa legislativa tão absurda e desprovida e base teórica. Oxalá seja este projeto de lei sumariamente rejeitado.