Que tiro foi esse? As problematizações chiques que nos levam do nada a lugar nenhum. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 11 de fevereiro de 2018 às 10:14

Os esquerdistas pós-modernos são, oficialmente, os donos do raio problematizador da internet.

Não passa nada: músicas, comerciais de TV, entrevistas, posts e até memes rendem discussões longuíssimas, dignas de uma tese de doutorado.

Dessa vez, entretanto, a problematização virou contra o problematizador: “Que tiro foi esse, viado?”, a música de Jojo Maronttinni (é, eu também nunca ouvira falar) que caiu no gosto do público LGBTQCdário é o novo tema de problematização geral.

A direita é burra e desinformada, mas não é pra tanto: mesmo eles sabem que “tiro”, nesse contexto, não está empregado de forma literal. É um termo esquerdoso que corresponde a “lacre”, que corresponde, grosso modo, a sucesso (teremos vergonha de ambos os termos no futuro, espero).

O que poucos sabem é que o termo surgiu de uma postagem real de pedido de socorro na internet, em 2013: uma mulher postou em seu Facebook “acabei de levar um tiro aqui dentro de casa”, e viralizou de tal forma que “tiro” ganhou uma nova conotação para o público LGBT, que, convenhamos, pouco se importa com pedidos de socorro de mulheres que levam tiros – não do sucesso alheio, mas da violência de seus companheiros – dentro de casa.

Em que pese a carga negativa de seu surgimento, o termo, atualmente, não incita violência: é apenas um hino da esquerda pós-moderna que não se importa em discutir violência, desde que todos lacrem satisfatoriamente.

Me intriga que, no mesmo Brasil dos funks proibidões e do “taca bebida depois taca a pica” – isso, sim, incita violência – uma música que não comete um pecado maior do que a cafonice seja alvo de tanta problematização.

É intrigante, na verdade, que músicas sejam alvo de problematização como se censurá-las fosse minimamente eficaz.

Não é. Manifestações culturais são causa, e não sintoma.

Os que estão indignados com “que tiro foi esse, viado?” pecam por desonestidade ou ignorância (talvez ambos), e as feministas estupefatas com “taca a bebida depois taca a pica e abandona na rua” estão no mínimo desinformadas quanto à realidade das mulheres mais pobres de seu país, acorrentadas ao seu feminismo pós-moderno que a essa altura em nada difere do feminismo neo-liberal, a não ser na teoria.

É difícil ser mulher no Brasil, mas é ainda mais difícil ser mulher favelada. A lei da favela – que, independe do nosso mundinho problematizador – é muito mais cruel.

Na periferia, o buraco é mais embaixo: mulheres são vítimas de estupros coletivos – que só eventualmente são divulgados na grande mídia – e levam tiros dentro de casa. A música, percebam, como tantas outras, é apenas um sintoma do que a sociedade – ou uma parte dela – quer dizer (nota: é pra isso que serve a cultura).

A incapacidade de um pensamento global – que é o verdadeiro sentido do pensamento esquerdista, ou deveria – é um sintoma claro das nossas prioridades deturpadas:

No mesmo mundo em que Malala, a garota afegã que quase morreu por defender a educação feminina de seu país, discute temas ainda tão primários como o direito das mulheres a existirem socialmente, feministas neoliberais se digladiam com feministas pós-modernas quanto à diferença entre flerte e paquera.

Há um abismo constrangedor entre as duas causas: quais são, afinal, as nossas prioridades?

É tempo de acordarmos para o que realmente importa: discutir feminicídio e direitos fundamentais das mulheres, por exemplo,  é mais importante que discutir Anitta e censurar os funks proibidões – que existem desde que eu me entendo por gente, mas são problematizados como a novíssima tensão pós-moderna -, mas, pra quem quer lacrar na internet, importa mais instalar uma guerrinha dos hits do verão.

Prioridades.