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Quem combateu a ditadura assumiu o risco de ser perseguido, diz TRF-3

Estudante de medicina durante protesto na Cinelândia, em 1968. Foto: Evandro Teixeira

Publicado originalmente no ConJur:

Por Sérgio Rodas

Militante de esquerda que combateu a ditatura militar cometeu crime contra a segurança nacional. Portanto, ficou sujeito a supressões de direitos. Com esse entendimento, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS), por unanimidade, reverteu sentença que havia condenado a União a pagar indenização por danos morais de R$ 150 mil à viúva do ferramenteiro Antonio Torini.

Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Antonio Torini era funcionário da montadora Volkswagen. Em agosto de 1972, ele foi preso na empresa e levado ao Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) de São Paulo, na Rua Mauá, no centro, onde passou 49 dias sob tortura, segundo seu relato. Após sua libertação, foi demitido da Volkswagen – o departamento de segurança da companhia avaliou que ele “não era confiável”.

Em primeira instância, ele foi absolvido por falta de provas sobre um apoio ativo ao PCB. Contudo, o Ministério Público Militar recorreu e, em 1974, o Superior Tribunal Militar o condenou a dois anos de prisão. Ele deixou a cadeia em outubro de 1975. No entanto, não foi readmitido pela Volkswagen. Como passou a constar de “listas sujas” trocadas entre empresas, viveu desempregado até morrer, em 1998.

Representada pelos advogados Bruno Luis Talpai e Victor de Almeida Pessoa, a viúva de Torini, Livonete Aparecida Torini foi à Justiça pedir indenização por danos morais da União pela prisão e tortura de seu marido. Em novembro de 2020, a 3ª Vara Federal de Santo André condenou a União a pagar R$ 150 mil a Livonete. A Comissão de Anistia já havia se manifestado favorável ao pagamento.

“O dever do Estado indenizar objetivamente surge apenas com a prova do fato ensejador do dano, qual seja, a prisão por determinado período, por motivação política, onde o próprio Estado já reconheceu que tais prisões foram realizadas mediante arbítrio e tortura. Decorrente disto, o abalo moral é inquestionável, visto que Antonio teve sua dignidade humana violada por meios nefastos e arbitrários, qual seja, prisão, tortura e perseguição por motivações políticas, além de ter sido demitido e experimentado desemprego permanente após 1974, tudo por conta da perseguição política”, disse o juiz José Denilson Branco.

O relator da apelação no TRF-3, desembargador Luis Antonio Johonsom Di Salvo, afirmou que Torini era “líder de movimento esquerdista” na fábrica da Volkswagen do Brasil “que pretendia subverter o regime vigente a partir de 1º de abril de 1964 [data do golpe militar] e substitui-lo por um governo comunista”.

O magistrado destacou que Torini era integrante do Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP). E citou que o grupo, conforme estudo da Fundação Getulio Vargas, “jogou seus esforços numa política de construção partidária e de ligação com o movimento de massas”, “sem deixar de assumir e colocar em prática a propaganda das ideias socialistas e a como meio de derrotar os poderosos perspectiva da via armada e construir o socialismo e a luta cotidiana para conquistar e ampliar as liberdades democráticas”.

Segundo Di Salvo, Torini, ao se opor à ditadura, praticou crimes contra a segurança nacional. “Está claro que Antonio Torini colocou-se, ativamente, contra a ordem então vigente e que suas ações e condutas amoldavam-se a delitos previstos pela legislação que — mal ou bem — representava o direito repressivo vigente”.

Como o ferramenteiro combatia o regime militar, sua prisão e supressão de direitos foram justificadas pelas leis da época, opinou o magistrado.

“Isto é dito para que fique claro que a prisão, a incomunicabilidade, o julgamento e o banimento sofridos por Torini eram as consequências jurídicas de seus atos que tendiam à implantação de uma ditadura comunista no Brasil, em confronto com a opção política vigente. Logo, não há espaço para indenização do agente dessas condutas a ser paga, via judicial, pela União, eis que o infrator das leis vigentes era Antonio Torini, vinculado a movimentos e partidos defensores da ditadura do proletariado. Tanto era infrator, que foi anistiado.”

“Dessa maneira, não se pode indenizar a suposta ‘dor moral’ de quem se submeteu aos rigores das leis vigentes pela própria vontade consciente, sabendo que infringia a legislação penal da época, onde a investigação, o processo e o julgamento eram as consequências legais, sem falar nas consequências da condenação penal”, analisou o relator.

A seu ver, só seria possível conceder indenização à família se Torini tivesse sido torturado. Porém, não ficou provado que o ferramenteiro tenha sido submetido a tais práticas por agentes estatais, ressaltou o desembargador. E o fato de a União ter reconhecido a condição de anistiado político de Torini, disse, não induz necessariamente à conclusão de que ele tenha sido torturado na prisão.

“No Direito Processual Civil, é ônus do autor provar o fato constitutivo do seu direito; se a viúva e os filhos de Antonio Torini desejam ser indenizados porque há mais de quarenta anos o marido e pai foi torturado, deveriam apresentar um mínimo de prova a respeito, não bastando juntar enxurrada de documentos que demonstram somente que o mesmo foi processo e preso porque conspirava contra a ordem jurídica vigente, intentando implantar o comunismo no Brasil”, afirmou Di Salvo, indicando que a decisão da Comissão de Anistia que concedeu indenização à família não mencionou que o ferramenteiro tivesse sofrido tortura.

Violação de direitos
Os advogados Bruno Luis Talpai e Victor de Almeida Pessoa, que representam a viúva de Antonio Torini, criticaram a decisão da 6ª Turma do TRF-3.

“Causou-nos estranheza o entendimento do acórdão de que, ao contrário das provas dos autos, não houve tortura. E que a prisão, a incomunicabilidade e o banimento sofridos pelo Antonio Torini, militante político de esquerda, amoldavam-se ao ordenamento jurídico à época”.

Talpai e Pessoa também afirmaram que as violações de direitos fundamentais sofridas por Torini não podem ser referendadas pelo Judiciário, seja à luz da Constituição de 1967 ou da Constituição de 1988.

“Assim, faz-se necessária a integral reforma do acórdão proferido para que sejam reparados os danos morais sofridos por uma vítima de atos de exceção, bem como para delimitar um parâmetro punitivo e educativo para que o Estado brasileiro não mais se valha das instituições públicas na prática de atos de intolerância política”.

Os advogados lembraram a Volkswagen firmou, em janeiro, termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público Federal pelo qual se comprometeu a pagar R$ 36,3 milhões por ter colaborado com a ditadura brasileira.

O procurador federal dos Direitos do Cidadão Carlos Alberto Vilhena, ao homologar o TAC, que o conjunto probatório produzido em cinco anos é bastante satisfatório, o que permitiu “concluir pela existência de um cenário de persistente e consistente colaboração ativa da Volkswagen com o regime militar”.

O relatório A VW do Brasil durante a Ditadura Militar brasileira 1964-1985: uma abordagem histórica, produzido pelo historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, foi usado para fundamentar o TAC.

No documento, há um depoimento que o também militante do PCB e ferramenteiro da Volkswagen Lucio Bellentani deu à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, preso três dias antes de Torini. Bellentani contou ter sido torturado por agentes da ditadura.

“Em 1972 aconteceu a prisão. Em 1972 fui preso dentro da Volkswagen. Estava trabalhando e chegaram dois indivíduos com metralhadora, encostaram nas minhas costas, já me algemaram, isso às 23h, coisa assim. Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco. Daí já queriam saber se tinha mais alguém na Volkswagen. Na época a base do partido dentro da Volkswagen era de aproximadamente 250 pessoas”.

Segundo Bellentani, as sessões de tortura ocorreram durante todo o período em que ficou preso. “A partir dali [ida para o Dops] começou a pauleira, quer dizer, pau-de-arara, arrebentaram algumas daquelas palmatórias na minha cabeça, nas mãos, nos pés; perdi alguns dentes. Isso daí foi assim por uns 45 dias, porque o que ocorria era o seguinte: eles sabiam que a base do partido dentro da Volkswagen era grande, mas durante esses 45 dias só estávamos o meu delator e eu, e ele não conhecia a organização como um todo, porque a gente se organizava em grupos”.

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